Crise e o Brasil: as duas saídas de Dilma

A presidente fez um discurso corajoso em São Paulo. Mas o governo (ainda?) não caminha na direção de suas palavras.

As crises permitem conhecer melhor os governantes. A fase brilhante do governo Lula começou precisamente em 2008, na primeira onda das atuais tempestades financeiras. Quando percebeu que as ideias supostamente “sérias” sobre a necessidade de “respeitar os mercados” haviam conduzido o mundo ao abismo, o presidente optou por políticas ousadas. Ao invés de cortar gastos, como mandavam os economistas “prudentes”, elevou o salário mínimo, a Bolsa Família, estimulou setores que começavam a demitir. As decisões sustentaram o emprego e a produção e mantiveram o Brasil a salvo. Já Barack Obama parece tornar-se menor, diante das dificuldades. Intensamente pressionado pelos extremistas do Partido Republicano e do Tea Party, passou a admitir, há cerca de um ano, uma agenda de corte dos serviços públicos e isenção de impostos para os ricos. De concessão em concessão, descambou, no início do mês, para um acordo desastroso sobre a dívida norte-americana. O compromisso, que torna o Estado quase impotente diante da crise, semeou desconfiança sobre a coordenação política dos Estados Unidos e foi o estopim de uma nova série de vendavais, cujos desdobramentos ainda não se pode prever.

Por tudo isso, é estimulante examinar um discurso feito no dia 10, em São Paulo, pela presidente Dilma  – e praticamente ignorado pelos jornais impressos. Ao participar de um evento fechado (a abertura do Encontro Nacional da Indústria da Construção), ela referiu-se explicitamente à segunda onda da crise, e indicou um rumo. Criticou de modo direto as políticas de ataque aos direitos sociais, que começaram a ser adotadas há cerca de um ano – primeiro na Europa, depois nos Estados Unidos. “Alguns (países)”, disse, “pegaram seus recursos fiscais e entregaram para os bancos. Salvaram os bancos e deixaram sua população, que estava endividada com o subprime, sem nenhum apoio e nenhum resgate”.

Garantiu que a postura do Brasil será diferente. “Nós não entraremos em recessão. (…) Não significa que sejamos imunes. Mas só seremos presas fáceis se não reagirmos”. Frisou que tal atitude permitiu que o país fosse, em 2008, “o primeiro a sair da crise”. E prometeu proceder da mesma maneira: “estamos decididos a preservar nossas forças produtivas, nosso emprego e nossa renda (…) Isto é correto do ponto de vista moral e ético, mas também do ponto de vista econômico”.

São palavras importantes, inclusive porque a crise financeira coincide com um momento de imenso desgaste da democracia representativa. Profundamente influencida pelas finanças, a maior parte dos parlamentos, governos e da mídia tornou-se surda em relação às sociedades, o que dá origem com frequência a políticas próximas à irracionalidade. É ótimo saber que, nas palavras, o governo brasileiro não foi tomado por ela.

Talvez esta lucidez da presidente, mobilizada pelas turbulências, possa ajudá-la a corrigir um gravíssimo problema de seu governo, diretamente relacionado ao discurso do dia 10. A política econômica seguida nos sete primeiros meses de gestão representou um retrocesso em relação à de seu antecessor, e faz lembrar a estupidez que Dilma enxerga em outros países.

Embora de modo mais ameno, o governo derivou, a partir de janeiro, para a mesma linha — de favorecimento aos mercados financeiros e descuido com serviços públicos – seguida por europeus e norte-americanos. Por um lado, o Banco Central promoveu cinco rodadas seguidas de elevação das taxas de juros. Elas passaram de 10,75% para 12,5% ao ano. Entre 58 países acompanhados pela revista The Economist, situam-se entre as cinco mais elevadas. Adotadas a pretexto de combater a inflação, são um péssimo remédio para enfrentar este mal. Além disso, provocam dois efeitos colaterais devastadores.

Transferem renda (via pagamento de juros) do conjunto da sociedade para a pequena minoria que tem dinheiro sobrante para aplicar no mercado financeiro. E devastam a indústria: a perspectiva de rendimentos incomparáveis atrai para o Brasil uma enxurrada de capitais especulativos de todo o mundo, encarecendo o real frente a outras moedas e tornando a produção nacional não competitiva.

Conformado em alimentar a ciranda especulativa, o governo restringe investimentos importantes. O volume de recursos retirado de todos os outros itens do Orçamento da União para pagamento de juros (o mal chamado “superávit primário”) vem batendo recordes. Apenas nos seis primeiros meses do ano, foram R$ 78,1 bilhões. São quatro vezes o valor destinado anualmente ao programa Brasil Sem Miséria, e mais de duas vezes e meia o orçamento total do trem-bala (R$ 33 bi)…

Para chegar a tanto, adotou-se no início do ano um bloqueio (“contingenciamento”) de recursos do Orçamento que perdura até hoje. Ele paralisa iniciativas públicas que têm enorme impacto na garantia de condições de vida, na geração de emprego e na manutenção da capacidade de consumo. Mas também liquida projetos essenciais a longo prazo. É responsável, entre muitos outros efeitos, pelo corte drástico de verbas sofrido pelo Ministério da Cultura e pela profunda letargia do Plano Nacional de Banda Larga – um iniciativa que a sociedade civil vê como estratégica e a presidente pretendia apresentar como um dos legados de seu governo.

As alegações apresentadas para o “contingenciamento” são frágeis. Fala-se em “austeridade” e “eficiência”. São, em princípio, valores muito positivos. Mas pratica-se um corte de verbas bruto, sem definir nenhum critério sobre que despesas devem ser eliminadas (o Estado continua comprando software que poderia ser obtido gratuitamente e importando de laboratórios transnacionais medicamentos cujas patentes poderiam ter sido quebradas, por exemplo). Ao mesmo tempo, abre-se os cofres do Tesouro para a despesa mais perdulária e contraproducente: o pagamento, a muito poucos, de juros que corroem o parque produtivo e de serviços do Brasil.

Politicamente, só é possível encontrar uma explicação para as políticas muito mais conservadoras, adotadas ao longo dos sete primeiros meses de governo Dilma. Governantes, como quaisquer seres humanos, têm virtudes e defeitos diversos. Sem o carisma, a tarimba política e o protagonismo nas lutas sociais de seu antecessor, a presidente sentia-se insegura para enfrentar as duas ameaças simultâneas com que se deparou no início do mandato. Temia que a alta da inflação derrubasse sua popularidade, ao corroer o poder de compra da nova classe média. E não se sentia segura para combater a alta dos preços enfrentando, ao mesmo tempo, os mercados financeiros e a mídia – sempre aliada a estes. Preferiu o conforto pouco criativo dos times que, no futebol, jogam pelo empate.

A presidente que falou no dia 10 era de outra natureza (veja, no vídeo abaixo, o trecho a partir do 13º minuto). A ousadia pareceu ter-lhe restituído confiança e humor. Não se sabe, ainda, se a mudança é duradoura. Hoje mesmo, há na mídia especulações em sentido oposto. Como os interesses envolvidos na política econômica são bilionários, haverá tensões. Mas é inegável que o discurso de São Paulo aponta para a possibilidade de que se abra a partir dele — e a depender das ações dos movimentos sociais — uma nova fase do governo.

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* Publicado originalmente no site Outras Palavras.