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Crise ucraniana consolida o Cazaquistão na órbita russa

Vladimir Putin e Nursultan Nazarbayev se cumprimentam em um encontro no Kremlin, em dezembro de 2012. Foto: Escritório de Imprensa e Informação do Kremlin – CC BY 3.0
Vladimir Putin e Nursultan Nazarbayev se cumprimentam em um encontro no Kremlin, em dezembro de 2012. Foto: Escritório de Imprensa e Informação do Kremlin – CC BY 3.0

 

Astana, Cazaquistão, 10/4/2014 – A crise da Crimeia faz pressão sobre a tradicional política externa do Cazaquistão, que busca equilibrar os interesses contrapostos de Rússia, China e Estados Unidos na Ásia central. Muitos nesse país temem que o forçado apoio do presidente Nursultan Nazarbayev à anexação russa da Crimeia possa estar abrindo seus próprios problemas separatistas.

Na Cúpula sobre Segurança Nuclear, no dia 25 de março, em Haia, Nazarbayev saltou o âmbito diplomático ao oferecer seu firme apoio ao líder da Rússia, Vladimir Putin, arquiteto da anexação da Crimeia. Nazarbayev culpou as novas autoridades da Ucrânia pela crise, ao alegar que Kiev havia cometido “um golpe de Estado”. Também disse que na Ucrânia há “discriminação das minorias”, fornecendo, assim, uma fachada diplomática para a posição russa.

Funcionários ucranianos furiosos qualificaram de “inaceitáveis” os comentários de Nazarbayev. Um representante do Ministério das Relações Exteriores do Cazaquistão se apressou em replicar que a reação ucraniana foi “ditada pelas emoções e não pelo senso comum”. A ocasião assinalou o segundo protesto de Kiev em uma semana. No dia 20 de março, havia se queixado porque Astana reconhecera o referendo da Crimeia do dia 16, que a Rússia usou como justificativa para anexar a península. No dia 27, o Cazaquistão se absteve em votação contra uma resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) declarando inválido o plebiscito.

A crise está gerando considerável pressão sobre o enfoque externo de Nazarbayev, que se assenta em manter boas relações com todas as potências. Essa política e a abundância de recursos naturais elevaram o perfil internacional do Cazaquistão na era posterior à União Soviética. Mas as recentes declarações de seu presidente estão conduzindo o país para um “beco sem saída” diplomático, alertou o líder da oposição, Amirzhan Kosanov. “O Cazaquistão perdeu sua independência para avaliar os acontecimentos mundiais e, deliberadamente ou não, está se tornando refém da política externa do Kremlin”, declarou à agência EurasiaNet.org.

A posição pró-Rússia do Cazaquistão está causando uma consternação interna generalizada. Os críticos se inquietam diante do perigo de que a doutrina de Putin de intervir para proteger os russos da Crimeia possa acabar aplicada ao Cazaquistão, embora em circunstâncias atualmente inimagináveis, pois Astana e Moscou são aliados e os direitos dos que falam russo, aglutinados no norte do país, estão garantidos.

Mas as semelhanças entre Cazaquistão e Ucrânia são notáveis: ambos são Estados que foram soviéticos, compartilham extensas fronteiras com a Rússia e são lar de importantes minorias de origem russa (22% da população no caso do Cazaquistão). “A posição do Cazaquistão está ditada não tanto pelo credo como pelo temor. Os fatos da Crimeia são um cenário possível para o Cazaquistão também”, disse à agência EurasiaNet.org o analista Aidos Sarym, radicado em Almaty, no Cazaquistão.

Manchetes sensacionalistas em toda imprensa do Cazaquistão ilustram as apreensões reinantes. “O Cazaquistão está ameaçado pela ocupação amanhã?”, publicou o Assandi Times. “O Cazaquistão é arrastado para uma guerra alheia?”, questionou a revista Adam Bol. “Ao apoiar a anexação da Crimeia, Akorda (a administração presidencial) está incentivando possíveis sentimentos separatistas dentro do país”, opinou Kosanov.

Dosym Satpayev, diretor do Grupo de Avaliação de Riscos, com sede em Almaty, acredita que o apoio de Nazarbayev à Rússia em detrimento da Ucrânia pode representar o que vê como o menor dos males. Para o presidente de 73 anos, que está há duas décadas no poder, o temor da dissensão interna supera toda preocupação com “possíveis inclinações separatistas dentro do Cazaquistão”, opinou. “Isso significa que os temores de revoluções e golpes de Estado são maiores para a direção do Cazaquistão do que a ameaça de separatismo”, explicou à EurasiaNet.org.

Sem se alterar pela posição pró-Kremlin de Nazarbayev, governantes ocidentais, como o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, e o presidente francês, François Hollande , fizeram fila para se reunir com ele em Haia. Isso sugere que o Cazaquistão ainda tem muito espaço para ações diplomáticas que o devolvam à sua tradicional política externa.

Além de ter o olhar posto nas reservas de petróleo e gás do Cazaquistão, os dirigentes de potências ocidentais podem estar esperando que, nos bastidores, o veterano Nazarbayev consiga exercer alguma influência apaziguadora sobre o irascível Putin. Astana emitiu pronunciamentos pró-russos confusos, com declarações sobre a necessidade de preservar a soberania da Ucrânia, realizando o que Sarym chama de “ato de equilíbrio verbal”. A cúpula nuclear deu a Nazarbayev uma oportunidade de relações públicas para destacar os contrastes entre Cazaquistão e Ucrânia, pontuou Satpayev, e para exibir a “estabilidade interna do país em matéria política e étnica”.

O presidente deixou claro que, além da política externa equilibrada em relação às diferentes potências, considera a Rússia como principal aliado estratégico de seu país. A Rússia é o maior sócio comercial do Cazaquistão: representou, no ano passado, 36% das importações, no valor de US$ 17,6 bilhões, e foi destino de 7% das exportações por US$ 5,8 bilhões. Embora a balança comercial favoreça a Rússia, esse país é um importante consumidor de produtos não petroleiros do Cazaquistão, ao contrário da maioria dos demais compradores. E esse é um aspecto crucial para o Cazaquistão.

Esse país também está vinculado à cooperação econômica com a Rússia por ser membro da União Aduaneira, uma zona trilateral de livre comércio que inclui a Bielorússia e que, mediante um acordo a ser assinado em maio, se converterá na União Euroasiática, a partir de 2015. A inclinação da Ucrânia para o Ocidente deu ainda mais significado político aos planos de Putin para a União Euroasiática.

Nazarbayev foi quem propôs a integração euroasiática em 1994, mas atualmente tem reticências com os componentes políticos desse processo. Em Haia, o presidente se esforçou para enfatizar que seu país tem “um interesse econômico puramente pragmático” na União, que permite ao Cazaquistão, mediterrâneo, acesso ao Mar Negro através de território russo sem pagar taxas.

Não se deveria esquecer que além do político e econômico há um “fator mental” que contribuiu para o apoio do Cazaquistão à Rússia, apontou Sarym. Muitos integrantes da direção política, incluindo Nazarbayev, ocuparam altos cargos desde a era soviética e, segundo sua visão, “Moscou é o centro do mundo e o Kremlin uma Meca cultural”. Envolverde/IPS

* Joanna Lillis é jornalista independente especializada em temas da Ásia Central. Este artigo foi publicado originalmente na EurasiaNet.org.