Como não sou capaz de memorializar e escrever o silêncio com versos perturbadores como os de Pádua Fernandes, deixo algumas frases à guisa de testemunho. Está em curso um processo metódico, paulatino, diário de agressão e rapinha contra a Amazônia e os seus povos, e assombra-me o silêncio com que ele é recebido. Uma breve conversa com indígenas, ribeirinhos, lavradores, ambientalistas, antropólogos ou jornalistas radicados ou especializados na Amazônia é suficiente para dar indícios do nível de revolta e da sensação de impotência que vai se disseminando. Os insultos se sucedem com velocidade superior à capacidade de qualquer um contabilizá-los, mas o Sul Maravilha –com honrosas exceções, como o indispensável Leonardo Sakamoto– se cala ou racionaliza o saqueio com argumentos chantagistas. Quando formos derrotados definitivamente, o dia 9 de novembro de 2011 ficará como um dos marcos da hecatombe. Executivo, Legislativo e Judiciário deram ontem sua contribuição ao “desenvolvimento”, essa palavrinha que, assim como na ditadura, é hoje usada pelos governos para que o povo acredite no que eles querem, como bem observou Eliane Blum, outra indispensável. As agressões de ontem são parte de um contexto que vale a pena ser recordado. Uma compilação completa demandaria um livro, mas ofereço algumas pinceladas.
Depois de os repetidores de “informação” oficial afirmarem que a “OEA” havia “voltado atrás” na medida cautelar contra Belo Monte, terem a sua barriga imediatamente apontada e não se corrigirem, a audiência convocada pela CIDH aconteceu e o Brasil, vergonhosamente, fugiu pela primeira vez em sua história. Pior ainda, pagou o mico de suspender os pagamentos à OEA, adentrando assim o terreno tipicamente norte-americano de represália a organismos internacionais em função de decisões que lhe desagradam –decisões estas tomadas com base em tratados que o país soberanamente assinou, como, neste caso, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Dias depois, um dos maiores líderes indígenas do país, o Cacique Kayapó Megaron, destaque na luta contra Belo Monte, foi exonerado de seu cargo na Funai sem um telefonema, sem uma explicação, sem uma palavra sequer, descobrindo por uma chamada telefônica de uma amiga que a sua exoneração havia sido publicada.
Em seguida, os repetidores de “informação” oficial tiveram que fazer um malabarismo maior para mentir. Afirmaram que a Portaria Interministerial 419 “não mudava nenhuma regra” de licenciamento ambiental. Seria um caso inédito na história da República: 23 páginas de Diário Oficial para não mudar nada. Na verdade, como analisou a Fórum em primeira mão, e como protestou com contundência o manifesto de dezenas de organizações indígenas e indigenistas, a Portaria 419 praticamente transforma a Funai, o Ibama e a Fundação Palmares em órgãos carimbadores às ordens do barragismo, do agronegócio, da mineração e das empreiteiras. A Portaria inclui até mesmo o requinte de crueldade de conceder aos estudos feitos pelo empreendedor a prerrogativa de estabelecer o que será caracterizado como “impacto direto” de uma obra – e portanto merecedor de compensações sociais. Apesar de todas as solicitações de audiência, pedidos de oitiva, cartas e petições, a presidenta Dilma parece ter decidido: ela simplesmente não conversa com indígenas.
Enquanto isso, no Congresso Nacional, o representante direto do Planalto na Comissão de Meio Ambiente, Jorge Viana (PT-AC), entrava mudo e saía calado, enquanto o trator ruralista decepava mais um item do Código Florestal, a recuperação das Áreas de Preservação Permanente (APPs) em margens de rios. Sendo excessivamente generosa com o governo, a Folha de S.Paulo manchetou hoje que ele “fez nova concessão” aos ruralistas, quando na realidade o governo atuou em estreita colaboração com o ruralismo, reunindo-se até altas horas da madrugada anterior no apartamento de ninguém menos que Kátia Abreu para combinar a retirada das emendas e destaques – aquelas mesmas que os repetidores de “informação” oficial prometiam que seriam a salvação da hecatombe relatada por Aldo Rebelo na Câmara. Do lado de fora, a truculência policial arrastava por 20 metros um estudante da UnB que protestava pacificamente, para depois premiar-lhe com um disparo de pistola de choque. Mas não se pode dizer que o estupro do Código Florestal não tenha tido seu momento cômico: a ministra do Meio Ambiente, Isabella Teixeira, declarou que o Senado havia “melhorado” a obra de Aldo Rebelo.
Mas ainda não acabou. O governo Dilma está às portas de realizar algo que nem a ditadura militar conseguiu: liberar o garimpo em terras indígenas. Reuniu-se nesta sombria quarta-feira (9/11) a Comissão Especial encarregada do assunto, cujo relator, deputado Edio Lopes (PMDB-RR), já declarou em microfone que o Brasil “não pode deixar de explorar” as riquezas minerais que se encontram em terras indígenas. Enquanto isso, Aldo Rebelo (desta vez em parceria com Ibsen Pinheiro) apronta mais uma das suas, e vê a Comissão de Relações Exteriores aprovar seu projeto que retira da União, sob a orientação da Funai, a prerrogativa de demarcar terras indígenas, atribuindo-a agora ao Congresso Nacional. Mas os indígenas ganharão, cortesia de Aldo Rebelo, ingressos para a Copa do Mundo.
E isso não é tudo. No Tribunal Regional Federal 1, a relatora Selene Almeida havia proferido um voto cristalino em favor da ação do MPF que pedia a suspensão de Belo Monte por falta de consulta aos indígenas, tal como exigido pelo Artigo 231 da Constituição. Esse voto havia sido depois empatado por Fagundes de Deus, ex-advogado da EletroNorte. O voto de desempate da desembargadora Maria do Carmo em favor de Belo Monte, mais um presente desta quarta-feira, incluiu a inacreditável frase “pouco importa quando os índios serão ouvidos, se antes ou depois da autorização do Congresso”. Era a “Justiça” brasileira cumprindo sua vocação histórica, a de servir aos poderosos. O MPF recorrerá ao Supremo para saber se nossa Carta Magna ainda possui o Artigo 231.
Enquanto isso, na base governista na internet, silêncio sepulcral. Devem ser “só uns 200 índios”. Quem sabe eles sejam nômades e não enxerguem a hecatombe. Seria, pelo menos, um ótimo álibi para nossa cegueira.
* Idelber Avelar é colunista da Revista Fórum outro mundo em debate.
** Publicado originalmente no blog do autor, no site da Revista Fórum.