Documentário de Régis Sauder questiona o que separa as escolas ricas de Paris dos bairros populares da periferia de Marselha.
Talvez hoje em dia a escola francesa seja identificada fora do país pelo multiculturalismo exemplar de Entre os Muros da Escola, filme premiado, dirigido por Laurent Cantet, que recriava artificialmente, numa única sala de aula, todas as contradições sociais que serviam ao diretor e ao discurso questionador da obra.
Existem no entanto outras visões, muito mais focadas nos guetos e microcomunidades presentes na França. A periferia das grandes cidades é geralmente marcada por uma grande exclusão e marginalidade, não só econômica mas principalmente cultural e religiosa.
Contra o cristianismo majoritário no Brasil, por exemplo, as periferias francesas constituem encontros entre o catolicismo, o islamismo da África negra, o islamismo árabe médio-oriental ou magrebino, o judaísmo, budismo… Na periferia de Paris, por exemplo, mais de um terço dos moradores é muçulmano.
Neste contexto, o documentário Nous, Princesses de Clèves (“Nós, Princesas de Clèves”) questiona não a sociedade inteira representada na sala de aula de Cantet, mas justamente o que separa as escolas ricas de Paris dos bairros populares da periferia de Marselha. O foco é portanto a relação com a educação, e principalmente com o livro-título, considerado o primeiro romance moderno francês e foco de uma disputa com o presidente Nicolas Sarkozy. De fato, Sarkozy representa a primeira figura da história do país a assumir a presidência que não corresponda à imagem do homem culto. Pelo contrário, ele mal terminou os estudos de direito, fala um francês frequentemente errado ou grosseiro, e solta seus melhores palavrões em ataques de fúria. Foi justamente o presidente que defendia a pouca importância deste livro, um dos principais da lista de leituras obrigatórias para o vestibular.
O conflito em questão é portanto de peso. O livro escolhido não é um romance qualquer, mas o símbolo da importância da educação, e da divisão sempre em voga entre cultura popular e cultura erudita. O linguajar do Século 17 é trazido à periferia com seu vocabulário próprio, suas gírias e sua exclusão social pela própria língua. O documentário poderia se limitar a percepção destas diferenças, mas ele vai muito além. De maneira simples, elíptica e familiar, e com um orçamento limitadíssimo, o diretor busca algumas classes da periferia e segue o primeiro contato com o livro em questão. Depois, os alunos são questionados sobre sua identificação com a narrativa, e por fim eles são convidados a encenar trechos do romance.
Esta estrutura ternária implica diferentes relações entre os entrevistados e a cultura: na primeira, vê-se como se compreende a “cultura nacional”, num segundo momento analisa-se a inserção neste contexto de nação unitária (é bastante interessante ver todos estes jovens se identificarem com o príncipe e a princesa de Clèves, aborrecidos em sua corte real), e por fim confronta-se a própria linguagem atual à antiga. A releitura e encenação, claramente artificiais, deixam os jovens sonhar com o que desejariam ser: princesas, galantes conquistadores em contextos de amor à primeira vista. Os garotos cortam o cabelo, as meninas se maquiam para encarnar monarcas do Século 17.
Os sonhos, justamente. Em paralelo com a nobreza fictícia, a câmera do filme invade suas casas, fala com as mães, pais, amigos, e obtém revelações fortes destas pessoas com perspectivas de futuro não muito ambiciosas. Presos em suas casas com muitos outros irmãos, impedidos de ter uma relação amorosa por causa dos pais muçulmanos ou católicos conservadores, eles contam por meio do contraexemplo do livro seus problemas pessoais. No entanto, o filme está longe da simples denúncia social, articulando de maneira equilibrada tanto os discursos dos jovens quanto o dos professores, tanto as versões dos pais quanto a dos homens cultos (e arrogantes) de Paris. Neste contexto, La Princesse de Clèves torna-se uma oportunidade de estranhamento e de escapismo, de confrontação à herança histórica cristã-galesa-branca-tradicional que lhes é estranha, e que ironicamente tem a intenção de representar esta ideia homogênea e abstrata de nação. “Este livro não é para mim, ele não fala de mim”: a dificuldade diante de uma forma de conhecimento elitista é vencida pela boa vontade diante das câmeras. Mesmo claramente desinteressados pelos estudos, estes jovens pretendem passar no vestibular e entregam-se ao jogo de faz de conta proposto pelas câmeras e pelo filme.
Neste sentido, Nous, Princesses de Clèvestransforma-se numa atividade pedagógica, certamente difícil de se implementar de maneira generalizada (nem todo mundo tem condições de fazer um filme para interessar os alunos), mas exemplar da educação lúdica e participativa que ainda está bem distante do ensino tradicional francês, com professores sentados atrás da mesa, proferindo solenemente o bom conhecimento. O projeto não carrega em si esta crença na educação como salvação à pobreza, e sim explora como esta crença esbarra nas dificuldades sociais, familiares, religiosas. É com certa amargura que a câmera abandona seus jovens diante dos resultados do vestibular, com alguns gritos de felicidade mas muitos choros de decepção. Não é preciso dizer que agora estes adolescentes terão que voltar para suas casas e tentar novamente, no ano seguinte, na esperança expressada por quase todos de sair dali, de abandonar a periferia, a família, e ir para outro lugar melhor.
Nous, Princesses de Clèves (2011)
Filme francês dirigido por Régis Sauder.
Com Abou Achoumani, Laura Badrane, Morgane Badrane, Virginie da Vega, Armelle Diakese, Anaïs di Gregorio, Chakirina El Anrif, Mona M’Tira, Gwenaëlle Le Dantec.
* Publicado originalmente no blog Discurso-Imagem e retirado do Outras Palavras.