Arquivo

Damasco ameaçada contém o ânimo

Alguns bairros de Damasco seguem tranquilas, como nesta foto tirada antes do levante armado, mas a tensão é crescente e as armas são ouvidas próximas. Foto: Karlos Zurutuza/IPS
Alguns bairros de Damasco seguem tranquilas, como nesta foto tirada antes do levante armado, mas a tensão é crescente e as armas são ouvidas próximas. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

 

Erbil, Curdistão Iraquiano, 4/9/2013 – “A vida é quase normal no centro de Damasco”, afirmou Hashim, do bairro predominantemente cristão de Bab Touma. “Só o ruído ocasional da artilharia na periferia me recorda que estamos em guerra”, acrescentou. Hashim, que não revelou o sobrenome por questão de segurança, por telefone falou de constantes engarrafamentos de veículos devido aos rigorosos controles e revistas, bem como do aumento nos preços dos alimentos e dos combustíveis.

Entretanto, Hashim assegurou que as lojas continuam abastecidas em um distrito em que Hafez al Assad (1930-2000) e seu filho Bashar, atual presidente da Síria, continuam competindo pela hegemonia em cartazes, murais, para-brisas e inclusive lembranças. “Tenho a sensação de viver em uma espécie de gaiola de ouro: vou ao ginásio todos os dias depois do trabalho, fico com os amigos no lugar de sempre. Mas sei que, a apenas um quilômetro da minha casa, pessoas lutam para sobreviver”, descreveu.

Após mais de dois anos de combates, o centro de Damasco se “disfarça” hoje de Bagdá. Um anel de blocos de concreto guardado por fortes medidas de segurança separa os redutos de Assad daqueles em disputa ou já controlados pela oposição armada. O clima ficou ainda mais tétrico após o suposto ataque com armas químicas, no dia 21 de agosto, na periferia de Damasco. Agora, os moradores da capital enfrentam a angústia causada pelo anúncio de uma eventual intervenção militar estrangeira no país.

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, anunciou, no dia 31 de agosto, que suas forças preparavam uma ação “localizada, mas contundente, para impedir um novo ataque químico”, decisão que finalmente será debatida no Congresso desse país no dia 9. Aram, também morador do bairro Bab Touma, não esconde seus temores. “Não tenho medo das bombas dos norte-americanos, mas de que estas preparem o caminho para todos os terroristas que estão arrasando nosso país”, testemunhou este homem que confia “plenamente” na capacidade do exército sírio para conter a oposição.

Atualmente, ninguém nega que desde o começo das revoltas, em março de 2011, a oposição síria foi reforçada por numerosos grupos extremistas islâmicos, alguns vinculados à rede Al Qaeda. O líder curdo Salih Muslim assegura que essas alianças cobrarão um preço “muito alto”. “Não que Assad seja mais forte, mas, após mais de dois anos e meio de guerra, a oposição está fragmentada e conta cada vez com menos apoio, tanto do exterior como do interior”, disse à IPS o também líder do Partido da União Democrática, dominante entre os curdos da Síria.

“A própria debilidade do Exército Livre Sírio (o contingente armado da oposição síria) faz com que este não possa se distanciar dos radicais islâmicos porque contam com maior capacidade militar”, pontuou Muslim. Em Saida Zainb, distrito operário do sul de Damasco, cuja situação é muito diferente da que enfrenta Bab Touma, o morador Hani Hosam, que apoia abertamente os insurgentes, descreve que os contínuos combates reduziram muitos edifícios a escombros e que muitas lojas são frequentemente assaltadas por milícias leais a Assad.

Hosam acrescentou que os cortes de energia são frequentes e os fornecimentos escassos, mas duvida que haja uma intervenção militar. “Um ataque não favorece os interesses de nenhum dos países atuando na Síria. Só traria mais destruição para nosso povo”, analisou para a IPS via Skype (programa de comunicação por internet). “A situação no terreno é extremamente complexa, precisamos de uma solução pacífica com urgência”, ressaltou.

Entretanto, do também castigado distrito de Jaramana, leste de Damasco, Naziha discorda. “Washington atacará porque precisa completar seu plano para toda a região”, disse esta drusa, acrescentando que a situação em seu bairro “não é muito ruim”. A jovem afirmou que apoiou a rebelião desde o começo, mas teme tanto a destruição que um ataque provocaria quanto as possíveis ingerências sobre seu país. “Devemos ser cautelosos. Mesmo se o governo cair em mãos da oposição, os Estados Unidos buscariam nos controlar a todo custo”, opinou.

Da calma relativa do distrito de Mezzeh, centro da capital, o curdo Khyder, de 34 anos, lamenta que o suposto ataque químico tenha chamado a atenção da comunidade internacional, “enquanto a Al Qaeda continua massacrando civis curdos sem que ninguém se escandalize”. Durante as últimas semanas o norte curdo da Síria é cenário de intensos combates entre células islâmicas e milicianos da região que não se alinham nem com Assad nem com a oposição.

“Por que o Ocidente fechou os olhos diante das atrocidades cometidas contra o povo sírio até hoje? Devemos, os curdos, ou qualquer outro povo, ser bombardeados com gases para forçar uma intervenção?”, questionou Khyder. Ele se preocupa pelo fato de o anunciado ataque chegar “muito tarde”. E não é o único. Ilya Topper, analista especializado em Oriente Médio e radicado em Istambul, na Turquia, ressume os fatos assim: “Querendo intervir, a ação teria que ter sido realizada há dois anos”, quando a queda de Assad não teria afetado a estrutura da Síria.

“A Síria teria mantido sua Constituição e se convertido na primeira república laica mais ou menos democrática do chamado mundo árabe. Se o regime é derrubado e se abre a via para uma vitória militar rebelde, a opção que resta à Síria é se converter em uma teocracia com nome republicano sob um regime de clérigos, muito semelhante ao desse Irã que tanto apoia Assad”, concluiu Topper. Envolverde/IPS