Cresce interesse por contribuições inovadoras da região e do Brasil. Mas em nossas universidades, muitos ainda se aferram ao eurocentrismo…
A colonização ibérica deixou um legado comum aos povos da América Latina que justifica seu entendimento como unidade cultural, geopolítica e econômica dotada de significado real e não apenas de sentido ideológico. Entretanto, parte deste legado é uma mentalidade eurocêntrica que nos cega para os laços que conectam nós, brasileiros, a nossos hermanos do restante do subcontinente. Esta cegueira debilita nossa capacidade de solucionar nossos problemas e de perceber o quanto ela mesma é anacrônica diante da posição conjuntural da América Latina no sistema mundial.
Não surpreende, portanto, que o Brasil, ou qualquer país latino-americano, seja um dos piores lugares do mundo para quem deseja estudar a América Latina como um todo. São pouquíssimos, na região, centros acadêmicos que oferecem programas de estudos latino-americanos. No Brasil, temos o Prolam da USP, o Iela da UFSC, entre poucos outros. Recentemente, o governo federal criou a Unila – Universidade da Integração Latino-Americana. Localizada em Foz do Iguaçu, na fronteira tripla de Brasil, Argentina e Paraguai, a Unila é uma iniciativa pioneira voltada à formação de uma comunidade regional de pesquisadores e estudantes dedicados ao estudo da América Latina. A Universidade é bilíngue (português e espanhol) e parte do corpo discente vem de países vizinhos. Vem somar a outros esforços de integração do continente em nível acadêmico, como o Clacso e a Flacso (Conselho e Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais).
Deste modo, pouco a pouco, vamos corrigindo um eurocentrismo incoerente não só com a realidade histórica deste conjunto de países, como também com sua posição na conjuntura atual do sistema capitalista mundial. Certos processos transnacionais contemporâneos, que encompassam e também são constituídos em países latino-americanos, tornam necessário o estudo da América Latina enquanto região. Talvez, o principal desses processos seja a relocalização dos centros de acumulação de capital em escala mundial, que se transferem do Eixo Atlântico-Norte para a Ásia. Este processo tem várias implicações para a América Latina. A abundância de dólares no mundo associada à crise nos Estados Unidos permite a países como o Brasil deter maiores reservas cambiais, habilitando-o a condicionar mudanças na governança das finanças mundiais. O commodity boom associado ao crescimento da China proporciona rendas extraordinárias a exportadores latino-americanos, as quais têm sido gerenciadas e aplicadas de maneiras diversas por cada país. Para a compreensão destas transformações, a perspectiva transnacional, regional e comparativa é a mais adequada.
Curiosamente, o eurocentrismo acadêmico existente na América Latina é incoerente também com a percepção (e expectativa) que estrangeiros têm de nós. Com base em experiência própria como acadêmico brasileiro em instituição universitária norte-americana, posso afirmar que professores e estudantes americanos não têm o menor interesse em saber o que conhecemos sobre a Revolução Francesa ou sobre a Independência dos Estados Unidos. Conosco, eles querem aprender sobre o movimento zapatista, sobre a bossa nova e Evo Morales (e vai passar vergonha quem só souber coisas sobre o Brasil). Nos syllabi de cursos sobre teorias do desenvolvimento em universidades americanas, não se mencionam contribuições de economistas brasileiros ou argentinos à teoria econômica ortodoxa (pois isto eles podem achar em Chicago), mas quase sempre há um par de leituras obrigatórias sobre a teoria da dependência.
Este desejo dos norte-americanos no que é genuíno do subcontinente é justificado. A América Latina, crescentemente, vem sendo reconhecida não mais como problema, mas como fonte de inovações em políticas públicas e mobilização social. Mesmo expoentes do pensamento conservador, como Francis Fukuyama (autor de O Fim da História), já reconhecem, por exemplo, que a América Latina é seio de “pensamento inovador em política social” e o Brasil, em particular, exemplo de uma “nova política industrial” no pós-crise, capitaneada pelo BNDES. Conforme observado por David Harvey, pensador marxista da City University of New York, olhando para a forma como os Estados Unidos e a União Europeia têm reagido contra a crise econômica mundial, vemos uma re-edição das políticas de austeridade fiscal que transferem o ônus da crise para grupos sociais desprivilegiados sob hegemonia das altas finanças. Na América Latina é que vemos novidades em relação aos decênios passados, como um keynesianismo equilibrado no Brasil e políticas sociais redistributivas de windfall profits na Argentina.
Logo, estudar a América Latina como região, compreender-nos relativamente aos nossos vizinhos, é ponto de partida apropriado para que possamos oferecer a nós mesmos, e ao mundo, alternativas originais para os desafios sociais, econômicos e ecológicos que o mundo enfrenta. Aos brasileiros, às vezes relutantes em se reconhecerem como latino-americanos, cabe lembrar que, se culturalmente somos parcialmente distintos por falarmos o português, territorialmente somos o país com o maior número de fronteiras com países latino-americanos. A mentalidade eurocêntrica nos faz ver a associação com a América Latina como motivo de vergonha; hoje, essa associação é empowering (política e analiticamente).
* Felipe Amin Filomeno é sociólogo e economista, doutorando em Sociologia pela Johns Hopkins University, com apoio da Capes/Fulbright e possui um blog pessoal. Tem artigos publicados nas revistas Economia & Sociedade, História Econômica & História de Empresas, e da Sociedade Brasileira de Economia Política.
** Publicado originalmente no site Outras Palavras.