Alguém disse que a internet é um lugar que não esquece habitado por hordas de desmemoriados. Revendo meus posts sobre a questão de geração de energia no Brasil e, mais especificamente, Belo Monte, achei vários comentários que conjecturam megateorias com base em absolutamente nada. Por isso, trago um apanhado da história do empreendimento. Daí tirem suas próprias conclusões.
O atual projeto de construção da hidrelétrica de Belo Monte é um remodelamento do projeto de Kararaô, concebido nos anos 1970 sob a ditadura militar, que previa a construção de seis grandes usinas ao longo do Rio Xingu e que alagaria quase 20 mil quilômetros quadrados (km2), atingindo 12 Terras Indígenas, além de grupos isolados da região – desalojando centenas de milhares de pessoas. Pressões nacionais e internacionais, aliadas à falta de recursos próprios, levaram ao congelamento do projeto no final da década de 1980.
Em 1994, um novo projeto, remodelado para se mostrar mais palatável aos ambientalistas e investidores estrangeiros, é apresentado ao Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica, hoje sucedido pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e à Eletrobrás. O reservatório da usina, por exemplo, é reduzido de 1.225 km2 para 400 km2, evitando a inundação da Área Indígena Paquiçamba. Em 1996, a Eletrobrás solicita autorização à Aneel para, em conjunto com a Eletronorte, desenvolver o complemento dos Estudos de Viabilidade do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte.
Em 2000, lideranças indígenas procuraram o Ministério Público Federal para denunciar que estavam ocorrendo medições na região de Altamira, o que levou a uma investigação dos procuradores sobre os fatos. Constatou-se que já se tratava do início do processo de análise para licenciamento de Belo Monte. Uma das primeiras falhas apontadas nesse momento foi que o processo de análise ambiental estava sob coordenação da Fadesp, órgão ambiental do Estado do Pará, sendo que a obra devia ser licenciada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), já que o Xingu é rio sob responsabilidade da União.
De acordo com o procurador do MPF no Pará, Felício Pontes Junior, esta e outras irregularidades levaram a uma primeira ação civil pública ambiental no início de 2001 contra o projeto. Segundo relato do procurador, a Justiça Federal determinou a paralisação de tudo. O governo federal recorre ao Tribunal Regional Federal em Brasília – e perde. Recorre ao Supremo Tribunal Federal – e perde novamente. Na decisão, o ministro Marco Aurélio sentencia que o licenciamento de Belo Monte, da forma como estava sendo realizado, contrariava a Constituição. Era necessário autorização do Congresso Nacional e que fossem ouvidas por ele as comunidades indígenas.
Em 2005, o governo federal retoma o projeto e o deputado federal Fernando Ferro (PT-PE) apresenta no Congresso uma proposta de decreto legislativo que autorizava Belo Monte. O Projeto de Decreto Legislativo (PDC) nº 1.785/05 é aprovado pela Câmara, no dia 6 de julho. Comunidades locais atingidas não haviam sido ouvidas, conforme determina a Constituição Federal, que afirma que o aproveitamento dos recursos hídricos em Terras Indígenas só pode ser efetivado com “autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas”.
Uma semana depois, o Senado também aprova o projeto (agora denominado PDS nº 343/05) que autoriza implantação de Belo Monte. Segue para promulgação sem que tenham sido ouvidos os nove povos indígenas que poderão ser atingidos seriamente pelo empreendimento. Uma ação civil púbica (ACP) que acusa o projeto de não ter realizado as oitivas indígenas, como prevê a Constituição, tramita até hoje na Justiça Federal.
No período seguinte, o MPF impetrou novas ACPs em função de graves irregularidades no processo de licenciamento de Belo Monte: além das já mencionadas, foram questionados judicialmente a falta de um termo de referência para a elaboração dos Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) do projeto, e a contratação sem licitação, pela Eletronorte, das empresas Camargo Corrêa, Norberto Odebrecht e Andrade Gutierrez para confeccionar o EIA por meio de um “Acordo de Cooperação Técnica”.
Em 2009, o Ibama recebeu das empreiteiras o EIA/Rima com muitas falhas. Alguns estudos fundamentais não tinham sido terminados, entre eles o espeleológico, a qualidade de água, e as informações sobre as populações indígenas, os impactos das inundações e os perigos de proliferação de vetores de doenças como dengue e malária, e a diminuição drástica de cem quilômetros do rio, na Volta Grande do Xingu. O próprio Relatório de Impacto Ambiental (Rima) não havia sido apresentado a contento, segundo o Ibama.
Os analistas do Ibama concluem que o documento precisa ser revisado para evitar os erros encontrados na análise deste Parecer (nº 36/2009). Um grupo de 39 pesquisadores e cientistas de universidades de todo o país e de institutos de pesquisa, denominado “Painel de Especialistas”, constatou desde a falta de estudos em determinadas áreas até erros grosseiros de dados que inviabilizariam Belo Monte. Apesar dessas advertências, o EIA/Rima foi aceito pelo Ibama.
Iniciou-se o processo de audiências públicas. O MPF exige que elas ocorram ao menos nos 11 municípios ameaçados pelo projeto (Altamira, Anapu, Brasil Novo, Gurupá, Medicilândia, Pacajá, Placas, Porto de Moz, Senador José Porfírio, Uruará e Vitória do Xingu), mas audiências foram marcadas apenas em três municípios atingidos (Altamira, Brasil Novo e Vitória do Xingu) e na capital, Belém. Estas audiências ocorreram em lugares diminutos, com forte aparato policial e impedimento da participação das populações ameaçadas, como foi denunciado posteriormente ao MPF.
Diante disto, nova ação judicial é proposta. O MPF recebe o apoio do Ministério Público do Pará. Eles pedem audiências públicas nas localidades afetadas pela barragem e reabertura do prazo, já que a íntegra do EIA só foi entregue nove dias antes da realização da primeira audiência pública. Conseguem liminar na Justiça Federal em 10/11/2009, que foi suspensa por decisão do TRF, um mês depois. O caso aguarda julgamento para que tudo volte às audiências públicas.
Ao final do processo das audiências, uma surpresa: elas não foram consideradas no prosseguimento do licenciamento de Belo Monte. De acordo com o parecer do Ibama de 23/11/2009, “tendo em vista o prazo estipulado pela Presidência, esta equipe não concluiu sua análise a contento. Algumas questões não puderam ser analisadas na profundidade apropriada, dentre elas as questões indígenas e as contribuições das audiências públicas”.
No final de 2009, as pressões sobre o Ibama para que aprove a Licença Prévia para Belo Monte são redobradas. Os técnicos dizem que não há tempo nem dados suficientes no projeto do governo e o diretor de licenciamento se exonera. Pouco depois, o órgão concede a licença apesar das irregularidades.
O MPF entra com ação judicial contra o governo. Entre as irregularidades apontadas, a principal é a seca de cem quilômetros da Volta Grande do Xingu, por onde o rio não mais passará em virtude de um desvio. Trata-se de uma região onde habitam pelo menos 12 mil famílias e 273 espécies de peixes. Os procuradores da República que redigiram a ação, Cláudio Terre, Bruno Gütschow e Ubiratan Cazetta, concluem que Belo Monte traz impactos socioambientais sem precedentes na construção de usinas hidrelétricas no Brasil. A liminar foi concedida e derrubada dias depois, e aguarda-se decisão de mérito.
A concessão de Licencia Prévia (LP) permitiu que Belo Monte fosse a Leilão em abril de 2010, estando agora sob responsabilidade do Consórcio Norte Energia S/A (Nesa). As condições ambientais e sociais sob as quais a LP foi dada, no entanto, foram tão frágeis, que foram impostas 40 condicionantes socioambientais e 26 condicionantes indígenas, pendências que teriam que ser sanadas antes da concessão da Licença de Instalação (LI), que permitiria o início das obras.
Entre as condicionantes ambientais, estão a obrigatoriedade da construção e reforma de equipamentos de educação e saúde em Altamira e Vitória do Xingu – obras de saneamento básico nesses municípios e implantação de saneamento básico em Belo Monte. O próprio Estudo de Impacto Ambiental feito pela Eletrobrás e empreiteiras prevê que a migração de trabalhadores em busca de emprego na obra será de cem mil pessoas. Considerando que a população atual de Altamira é de 94 mil, e que o máximo de postos de trabalho gerados pela obra será de cerca de 19 mil – e isso apenas no terceiro ano, pois nos demais anos esse número é menor –, além da explosão demográfica Altamira terá, no mínimo, 80 mil pessoas desempregadas no próximo período.
Também foram exigidos: a demarcação física das Terras Indígenas Arara da Volta e Cachoeira Seca; levantamento fundiário e desintrusão da TI Apyterewa; solução e apoio à arrecadação de áreas para reassentamento dos ocupantes não indígenas; o fortalecimento da Funai na regularização fundiária e proteção das TIs; redefinição de limites da TI Paquiçamba, com acesso ao reservatório; completa desintrusão e realocação de todos os ocupantes não índios das TIs envolvidas neste processo; todas as TIs regularizadas (demarcadas e homologadas).
Entre 2010 e 2011, tanto o poder público quanto a Nesa ignoraram a obrigatoriedade de cumprimento das condicionantes, e, em uma manobra ilegal, exigiram que o Ibama concedesse uma “Licença de Instalação Parcial” para o inicio das obras da usina (sob o argumento que seriam construídos apenas os acampamentos e as estruturas dos canteiros de obra). O absurdo do processo levou a uma nova demissão na presidência do Ibama, já que não existe na legislação brasileira a figura da licença parcial.
A despeito disto, a despeito de uma nota técnica da Funai contra a licença, e a despeito de que apenas quatro condicionantes foram realizadas parcialmente, 29 não haviam sido cumpridas, e sobre as demais 33 não havia qualquer informação, o presidente interino do Ibama concedeu a licença parcial em 26 de janeiro deste ano.
Imediatamente após o fato, o MPF entrou com nova ação contra o governo. Em 25 de fevereiro, a Justiça Federal no Pará determinou a suspensão imediata da licença de instalação parcial. O juiz Ronaldo Destêrro, da 9ª Vara da Justiça Federal em Belém, considerou que as condicionantes necessárias segundo o próprio Ibama para o início das obras não foram cumpridas. “Em lugar de o órgão ambiental conduzir o procedimento, acaba por ser a Nesa que, à vista dos seus interesses, suas necessidades e seu cronograma, tem imposto ao Ibama o modo de condução do licenciamento de Belo Monte”, diz o juiz na decisão. A liminar foi cassada (de novo) logo após pelo TRF1, sob forte pressão da Advocacia Geral da União.
Em função das inúmeras violações de direitos humanos a serem potencialmente causadas por Belo Monte a partir da forma como a usina tem sido licenciada e projetada, uma organizações de direitos humanos solicitou, ainda em 2010, que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) emitisse uma medida cautelar instando o governo brasileiro a cumprir a Constituição nacional e respeitar acordos Convenção Americana de Direitos Humanos e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Em 1º de abril de 2011, depois de já ter solicitado explicações ao governo brasileiro, a CIDH comunicou que havia solicitado ao Brasil que paralisasse o processo de licenciamento de Belo Monte até que fossem feitas as oitivas indígenas e cumprido o direito das mesmas às consultas livres, prévias e informadas. O governo respondeu à recomendação, retirando o nome de seu candidato à uma vaga na CIDH, Paulo Vanucchi, ex-ministro da área de Direitos Humanos, e chamando de volta ao país o representante brasileiro na OEA. E se negou a cumprir os requerimentos da CIDH.
O resto é história recente sendo escrita neste momento.
Com informações do Ministério Público Federal, Instituto Socioambiental, Movimento Xingu Vivo, Ibama, Funai e do Painel de Especialistas sobre Belo Monte.
* Publicado originalmente no Blog do Sakamoto.