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De Mosul, o Iraque se parece cada dia mais com o Irã

Os manifestantes ocupam a Praça Ahrar, na cidade iraquiana de Mosul, desde dezembro de 2012. Foto: Beriwan Welat/IPS

Mosul, Iraque, 5/4/2013 – Veículos blindados e milhares de soldados usando máscaras negras controlam a entrada em Mosul, 350 quilômetros a noroeste da capital do Iraque. A sensação de entrar em um território ocupado é inconfundível, só que desta vez não é o exército dos Estados Unidos, mas o iraquiano. Parada obrigatória na rota da seda, Mosul foi conhecida durante séculos pela excelente qualidade de seu mármore e por ter revolucionado a moda na Paris do século 18 com seu produto mais emblemático: a musselina.

Mas o início do século 21 trouxe mudanças drásticas a esta cidade às margens do rio Tigre: após dez anos no fogo cruzado entre islâmicos, insurgentes e ocupantes, a capital da região de Nínive é hoje cenário das maiores manifestações antigovernamentais desde 2003. Desde dezembro, se sucedem discursos e rezas que reúnem multidões na Praça Ahrar, centro da cidade, como também em Al Anbar e Saladino, as outras duas províncias iraquianas nas quais os árabes sunitas são maioria. Toda sexta-feira, dia festivo muçulmano, os protestos atingem seu ponto máximo.

“A polícia federal fecha as pontes sobre o Tigre e revista detalhadamente quem chega até a Praça”, conta à IPS o coordenador dos protestos em Mosul, Ghanem Alabed. “Confiscam barracas, cobertas, esteiras. Temos que rezar sobre o chão porque também levam nossas pequenas almofadas de oração. Fazem o impossível para que o acampamento não seja estável, mas, mesmo assim, dormimos na praça cada noite. Alabed, um dos rostos mais visíveis dos protestos, denuncia que recebeu ameaças e tentativas de suborno de Bagdá. E garante não ser o único. “Vê aqueles homens no telhado?”, pergunta apontando para um dos prédios próximos. “São policiais e passam o dia tirando fotos dos manifestantes para identificá-los”, explicou.

Porém, é uma missão quase impossível. São dezenas de milhares de desempregados, assalariados, crianças e idosos, políticos de destaque e líderes tribais. O xeque Safed al Maula é um destes últimos. “Quem manda hoje no Iraque é o Irã. Bagdá está nas mãos dos safávidas – nome de uma dinastia iraniana com o qual se designa os xiitas persas – e nós sunitas submetidos a uma marginalização sistemática”, denuncia este chefe de clã, que usa um turbante vermelho.

Outro ilustre manifestante é o governador de Nínive, Athiel al Nuyafi, um dos dirigentes do Al-Iraqiya, principal bloco opositor no parlamento nacional e o que concentra o voto sunita. “Além das demandas mais básicas, como água, eletricidade e emprego, toda esta gente denuncia os abusos aos quais nos vemos submetidos pelo desequilíbrio das forças que exercem o poder em Bagdá”, explicou à IPS este destacado dissidente que o primeiro-ministro, Nuri al Maliki, tentou retirar de seu posto em várias ocasiões. A sua é uma mensagem simples, mas contundente: “O governo em Bagdá tem de cair, não há outra opção para o país”.

“Maliki na prisão”, “Irã fora do país”, “Abaixo o regime”. Após rezar, a multidão grita palavras de ordem contra o governo entre bandeiras iraquianas, desde a atual até as que mostram as três estrelas vermelhas na faixa branca central, suprimidas em 2008. As mesmas palavras de ordem podem ser lidas em enormes cartazes pendurados em um edifício em construção junto à Praça. No jornal Iraqion (Iraquianos), jornalistas denunciam o assédio que sofrem por exercerem seu trabalho. “A polícia confisca nossas câmeras e prende e hostiliza os informantes”, afirmam.

Mosul continua sendo uma das cidades mais perigosas deste país para os jornalistas, recordam. Desde a invasão norte-americana em 2003, 43 morreram aqui. Os protestos contra o governo começaram a engrossar em dezembro de 2012, depois da prisão dos guarda-costas de Rafi al Issawi, proeminente líder sunita no Poder Executivo, onde ocupou cargos de ministro das Finanças e de vice-primeiro-ministro. Durante o regime de Saddam Hussein (1979-2003), muitos postos de poder foram ocupados por sunitas, mas não havia a divisão sectária que hoje afeta o Iraque.

Tal é a magnitude dos protestos em Mosul, Faluja e Ramadi (situadas 60 e 110 quilômetros a oeste de Bagdá, respectivamente), que o primeiro-ministro, Maliki, denunciou que são promovidas por “agentes estrangeiros”. Mas, isso não é tudo. No dia 8 de março, a polícia federal abriu fogo contra os manifestantes em Mosul, matando um e ferindo vários. Entre as muitas testemunhas desse fato estava o médico Ghanim al Sabawi. “Aconteceu depois da oração da sexta-feira. Tivemos que atender os feridos na praça porque a polícia impedia sua retirada em ambulâncias”, recorda este médico que disse poder compatibilizar profissão e reivindicação, apesar de dormir na praça quase todos os dias da semana.

Salem al Yubury, porta-voz dos protestos, afirma que os incidentes de 8 de março foram “provocações por parte das forças de segurança para criminalizar os protestos. O governo perdeu a popularidade e sua única defesa é o ataque”. Yubury acrescentou que “começamos em dezembro com demandas bem simples, e com o tempo estão se convertendo também em políticas”.

A alarmante escalada de tensão entre xiitas e sunitas coincide com a guerra na vizinha Síria, uma combinação potencialmente explosiva e que pode colocar este país à beira de um conflito civil armado. Yubury não descarta esse cenário. “Continuaremos buscando de forma pacífica a queda do regime e um governo de transição. Mas, se não houver mudanças, todas as opções estão abertas”, afirmou. Envolverde/IPS