Documentos como a Declaração da Caatinga comprovam o histórico paradoxo existente entre o diagnóstico e política pública eficaz para convivência com o semiárido.
O problema da falta dágua é serio e está atrelado ao valor direto de manutenção da vida. A Indústria da Seca caminha no sentido contrário ao discurso marketeiro da sustentabilidade, propagada em peças publicitárias massivas, veiculadas na mídia.
Estudos científicos revelam que a Caatinga é o maior bioma da região Nordeste e o único exclusivamente brasileiro. A população de cerca de 28 milhões de pessoas que habita a Caatinga faz dessa região uma das mais densamente povoadas entre aquelas de características climáticas similares no mundo. Se esse problema poderia ser um desafio para adotar boas gestões compartilhadas entre Governo, empresas e sociedade civil, parte desse contingente continua vivendo sob grande vulnerabilidade social e econômica.
É na Caatinga que vive a população mais pobre do Nordeste, uma das mais miseráveis do Brasil. Esse perfil populacional gera significativa dependência comunitária aos recursos naturais locais e atrai grande atenção de benefícios do governo como o Bolsa Família e Programas como o Água para Todos, Minha Casa Minha Vida, entre outros propagados com a cara de combate à pobreza. No entanto, o bioma carece de políticas de conservação e de uso sustentável da terra, o que engessa o desenvolvimento e camufla o potencial de uma riqueza biológica pouco divulgada e reconhecida.
A Caatinga também é o bioma brasileiro menos protegido e pesquisado. Ao contrário da Floresta Amazônica, da Mata Atlântica, da Serra do Mar, do Pantanal e da Zona Costeira, ainda não é considerada como patrimônio nacional. Entre um ciclo e outro de estiagem o governo libera milhões de recursos emergenciais para amenizar os efeitos negativos da seca. Dinheiro que o povo se ressente de não chegar, afirma dona Lídia Souza, 62 anos, moradora da comunidade de Umburana, Sertão da Bahia. “A gente tem o tíquete dado pela associação para receber água do carro-pipa e é uma disputa danada, tem muita briga e quando a água chega, às vezes até suja, a gente tem que dividir com todos os moradores e usar com muito cuidado, cada litro, porque o próximo carro a gente nunca sabe quando vai chegar”.
Monoculturas e degradação
Apesar de documentos como a Declaração da Caatinga considerarem que o elevado nível de desinformação sobre a Caatinga faça com que esse bioma não tenha o mesmo apelo que a Amazônia e a Mata Atlântica possuem, dentro e fora do país, não vemos programas eficientes de prevenção ao desmatamento. Ao contrário, o estímulo vem em forma de monoculturas como a da soja, algodão, milho, mamona, em detrimento à diversificação característica da agricultura familiar.
O que se constata é a perda de cerca de 46% da vegetação original da Caatinga. Como consequência, o gado aparece em pastos brancos, a exemplo do que foi constatado nas regiões de Adustina, Cícero Dantas, Monte Santo, Euclides da Cunha, todos do estado da Bahia. Esses lugares refletem a intensa, inadequada e insustentável exploração dos recursos naturais, através da indústria de carvão, agropecuária e desvios de água – pivôs sedentos de commodies de interesse da balança comercial.
Pobreza e êxodo histórico
A escassez de projetos que integrem desenvolvimento econômico, inclusão social e proteção ambiental incentivam o êxodo rural e, mais recentemente, favorecem uma onda de suicídios. Esses motivados por endividamentos e pela incapacidade de aceitar perdas irreparáveis, como a própria fé e esperança de melhoras da situação de sempre.
A professora Normeida Borges, 51, nascida no município de Antas (BA) e moradora da cidade de Adustina observa, em viagem para Aracaju onde foi fazer exames, que os pastos estão limpos, secos e comenta que a situação é resultado da monocultura de milho.
O cimento deu lugar ao chão, e nas casas não se planta no terreiro da frente ou do fundos, como faziam as famílias, tempos atrás. As fotos clicadas em trechos de estradas entre Bahia e Sergipe revelam ainda sinais de desertificação. Numa seca como essa, intensificada a partir do final de 2011, a cultura única de milho, mamona, tomate, ou melancia, por exemplo, não resiste a tempos longos de falta de chuvas. Sem alternativas ou acesso à água, a população continua a fugir para outros estados como São Paulo, sob a antiga crença de que os problemas socioambientais traduzidos em pobreza, desigualdade e exclusão social serão amenizados.
Documentos mortos e cenários desumanos
Diagnósticos apresentados na Declaração da Caatinga indicam compromissos para o enfrentamento de problemas da seca e seus efeitos múltiplos. O documento elenca, de forma articulada, políticas públicas integradas, transversais, no entanto, as propostas não saem do papel.
Durante a convivência com os moradores do semiárido foi possível evidenciar que a realidade não corresponde ao que está escrito na Declaração da Caatinga. O povo sofre para tentar comprar água cara e de qualidade duvidosa, vindas em comboios de carros-pipa nas estradas. Postos de saúde, hospitais e centros de emergência estão superlotados de pessoas doentes, por contaminação ou uso inadequado da água. Quando conseguem ser atendidas, em via crucis – estradas afora, recebem diagnósticos apressados em sistemas de saúde ineficientes.
Perdas e desafios
Pequenos proprietários de terra como seu Arnou Santos, 72, na região de Senhor do Bonfim, convivem com uma família numerosa numa área de terra esturricada, açudes secos, e matas transformados em pastos. As poucas cabeças de gado dos pequenos agricultores morrem de fome ou são envenenadas ao se alimentarem indevidamente.Além disso, as galinhas adoecem, as cabras desaparecem e os cachorros ficam com a pele à mostra.
Por extensão, faltam empregos, crianças e adolescentes e idosos minguam às margens das rodovias pedindo esmolas, tentando vender o pouco do que a natureza teima em conservar. E mesmo quem recebe os benefícios sociais precisa regrar cada quilo de feijão, arroz, açúcar, para o mês inteiro.
Na roça do seu Sabino Ferreira 81, e dona Iracema, 80, na Passagem Velha (Bahia), das 20 cabeças de gado que produziam 50 litros de leite por dia, seis cabeças morreram logo nos primeiros meses dessa histórica seca. Com uma aposentadoria de cerca de R$600 reais seu Sabino não consegue mais pagar o leiteiro ou comprar água de carro-pipa. ”Se a gente morre, o gado também morre, e vai fazer se o quê?”, lamenta seu Sabino.
* Liliana Peixinho é jornalista, especialista em Jornalismo Científico e Tecnológico, com atuação em Mídia, Meio Ambiente e Sustentabilidade. Ativista socioambiental, fundadora dos Movimentos Amigos do Meio Ambiente (AMA) e Rede de Articulação e Mobilização Ambiental (RAMA).
** Publicado originalmente no site Ciência e Cultura.