A crise que o mundo está vivendo tem aspectos paradoxais. Presta-se a múltiplas interpretações, cada uma delas colocando, segundo o viés ideológico do analista, seu foco sobre os diferentes aspectos em que ela se revela. Os economistas do “mainstream” estão na defensiva por terem demonstrado “matematicamente” (e até conseguido prêmios Nobel) que os mercados (em particular o financeiro) eram eficientes e autoadministráveis. Dispensavam, portanto, a “mão visível” do governo.
Os economistas com viés marxista não deram um passo além da constatação do velho Karl: os mercados financeiros são essencialmente instáveis. Pela centésima vez proclamam o rápido fim do capitalismo, como se ele fosse uma coisa e não um processo histórico com as “contradições” que o dinamizam e o civilizam lentamente pelo sufrágio universal.
Os economistas com viés keynesiano hidráulico (incorporado ao “mainstream“) assistiram ao irremediável fracasso dos seus “multiplicadores”. Mecanizaram as sofisticadas considerações psicológicas do papel das expectativas e a inevitabilidade da incerteza sobre o futuro opaco. Essas continuaram a ser cultivadas apenas por um pequeno grupo, expulso da profissão como “heterodoxo”.
Os economistas do “mainstream” foram, no máximo, apenas coadjuvantes da crise. Quatro anos depois de instalada, é evidente que sua “causa eficiente” foi a rendição dos governos à pressão econômica do único poder universal emergente: os mercados financeiros! Apenas teorizaram “a posteriori” a luta entre o poder incumbente e o mercado financeiro, que queria livrar-se do controle que lhe fora imposto nos anos 30 do século passado (exatamente por ter causado a crise de 1929).
Deram-lhe um suposto apoio científico. Papel coadjuvante, mas importante para a aceitação, pela sociedade desprevenida, da ideologia (vendida como ciência) que a desabrida liberdade das “inovações” do mercado financeiro e sua internacionalização eram fatores decisivos para o aumento da produtividade da economia real e para o desenvolvimento econômico dos países.
Hoje, os americanos parecem ter clara consciência de quem é a “culpa” pela tragédia que estão vivendo. Um levantamento do Gallup (15/16 outubro) mostrou que 2/3 das pessoas consultadas a atribuem ao governo federal e 1/3 às instituições financeiras. Mas o fato ainda mais grave (e que coloca em risco a reeleição do presidente Obama) é que a “qualidade” do programa posto em prática pelo governo de Washington para enfrentar a crise é considerada lamentável: mais de um US$ 1 trilhão de estímulos e quase quatro anos depois, o crescimento é pífio e o desemprego altíssimo. O verdadeiro conhecimento empírico e teórico da economia poderia ter sido melhor utilizado na formulação do programa, como mostraram em interessante artigo J.F.Cogan e J.B.Taylor (“Where Did the Stimulus Go?”).
O US$ 1 trilhão de estímulo foi dividido em três programas de inspiração keynesiana-hidráulica: 1) colocar dinheiro diretamente nas mãos dos cidadãos (cheques do Tesouro) para que eles o gastassem em consumo (US$ 152 bilhões); 2) disponibilizar recursos para compras governamentais e infraestrutura (US$ 862 bilhões); e 3) transferir verba para Estados e governos locais, na esperança que ampliassem seus gastos com bens e serviços (US$ 173 bilhões).
Como se deveria esperar, em razão de experiências anteriores e desenvolvimentos teóricos, eles não produziram qualquer efeito “multiplicativo” importante, ao contrário do que haviam previsto os assessores econômicos de Bush e Obama.
A ineficiência do primeiro estímulo é consequência das pesquisas de Milton Friedman e Franco Modigliani, que mostraram que o consumo está ligado à renda “permanente” e não a um estímulo ocasional, frequentemente utilizado para “diminuir as dívidas” dos agentes, que foi o que aconteceu.
Quanto ao segundo, devido às dificuldades operacionais que sempre acompanham aumentos inusitados de disponibilidade de recursos no serviço público (a falta de bons projetos e a indisposição da burocracia, elementos amplamente conhecidos e empiricamente constatados), não se gastou até o terceiro trimestre de 2010 mais do que 5% do estimado!
Quanto aos estímulos transferidos para Estados e governos locais, eles tiveram o mesmo destino dos enviados diretamente aos consumidores: foram basicamente utilizados na redução de dívidas. De fato, dos US$ 173 bilhões transferidos, 4/5 foram utilizados no pagamento de dívidas acumuladas, o que praticamente anulou o efeito físico do “multiplicador”. Aqui, também, já havia evidência empírica (Ned Gramlich, 1979) mostrando a ineficiência desse tipo de programa.
Esses fatos mostram o quanto de “ilusão” estatística está envolvida no cálculo descuidado e ingênuo dos “multiplicadores” ditos “keynesianos”, quando se esquece o próprio Keynes. Se na prevenção da crise e na sua construção podemos criticar o “mainstream“, parece que lhe devemos um crédito na crítica do horrível projeto de recuperação de inspiração do “keynesianismo-hidráulico” que desperdiçou US$ 1 trilhão…
* Delfim Netto é economista, formado pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Economia, foi ministro de Estado e deputado federal.
** Publicado originalmente no site EcoD.