Santiago, Chile, 26/1/2015 – Nos sistemas penitenciários da América Latina, as pessoas presas convivem com insegurança, superlotação extrema e inclusive morte, o que contradiz nos fatos um grande êxito da região: a abolição da pena de morte praticamente em todos seus países.
“A pena de privação de liberdade pode se transformar em muitos países latino-americanos, na prática, em uma pena de morte”, afirmou Amerigo Incalcaterra, representante regional para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (Acnudh).
A abolição legal da pena capital é de longa tradição na região, e, na verdade, a Venezuela foi o primeiro país do mundo a fazê-lo, em 1863, e a Costa Rica o terceiro, em 1882. Atualmente, apenas dois países a mantêm em sua legislação: Cuba e Guatemala, e sua última aplicação na ilha caribenha aconteceu em 2003.
Entretanto, esse avanço contrasta com a realidade dentro das prisões latino-americanas, onde a situação atual é muito grave, segundo especialistas e organizações de direitos humanos. Altos níveis de violência, numerosas mortes e delitos que ocorrem no interior dos presídios, e gravíssimas violações dos direitos humanos, são alguns dos componentes com os quais se defrontam cotidianamente as pessoas privadas de liberdade na região, denunciam.
“Na América Latina, existem problemas crônicos que afetam os sistemas carcerários e que não são adequadamente enfrentados nem mesmo resolvidos pelos Estados”, acrescentou o italiano Incalcaterra em entrevista à IPS. Com ele concorda a peruana Olga Espinoza, coordenadora da Área de Estudos Penitenciários do Centro de Estudos em Segurança do Cidadão (Cesc) da Universidade do Chile, para quem os sistemas penitenciários latino-americanos estão em crise.
“O último informe do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) apresenta dados muito corretos sobre a situação de superpopulação, representação de presos preventivos, frágil institucionalidade em muitos países e dificuldades na implantação efetiva de programas de reinserção social”, destacou Espinoza à IPS.
Entre os casos de maior gravidade está a Venezuela, onde a violência dentro das prisões é generalizada, com enfrentamentos com uso de armas de fogo, explosivos e outros armamentos, afirmaram os especialistas. Com uma população carcerária de 53 mil pessoas, as autoridades venezuelanas reconheceram ao Acnudh a morte de 402 presos nos 11 primeiros meses de 2014. O órgão situa a superpopulação carcerária do país em 231%, embora o governo local defenda que em 87% das prisões do país não há superlotação.
No caso do Brasil, organizações humanitárias denunciaram condições cruéis, desumanas e degradantes habituais dentro das prisões, além de numerosos informes sobre tortura, com práticas como semi-asfixia com sacos plásticos, surras e choques elétricos. Na maioria dos casos, estão implicados membros da Polícia Militar, acrescentaram.
Apesar da gravidade, “os casos de Venezuela e Brasil não são isolados, mas se inserem na situação generalizada da região”, disse Incalcaterra. “Certamente, os dois países enfrentam importantes desafios de violência intracarcerária e a falta de controle do Estado em determinados casos, segundo vários mecanismos independentes das Nações Unidas”, apontou.
“Entretanto, nenhum país da região está livre dos problemas como superlotação, condições de detenção precárias, falta de acesso a serviços básicos e casos de maus tratos e torturas”, ressaltou Incalcaterra.
Os altos níveis de superpopulação propiciados pelo recurso sistemático às penas privativas de liberdade em detrimento de medidas alternativas, e pela falta de infraestrutura adequada, são alguns dos problemas crônicos que afetam os sistemas penitenciários da região.
A isso se somam “a falta de acesso a serviços básicos de saúde e alimentação adequada, e as condições gerais de detenção segundo os padrões mínimos aceitos internacionalmente”, disse o representante do Acnudh. “Essa situação alimenta a violência carcerária, incluídos casos de tortura, e constitui uma violação direta da integridade e da dignidade das pessoas privadas de liberdade”, ressaltou.
Segundo um informe da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 2013 havia na região 943 mil presos, dos quais 354 mil estavam em prisão preventiva, esperando julgamento ou sentença. Os casos mais críticos eram os da Bolívia, com 84% da população reclusa sem sentença, Paraguai (73,1%), Panamá e Uruguai (65%), Peru (58,8%), Venezuela (50,3%) e Guatemala (50,3%).
Como resultado, ocorrem tragédias como a de 8 de dezembro de 2010 no Chile, a maior da história carcerária do país. Em um incêndio morreram 81 presos, a maioria por seu primeiro crime, variados de tipo menor. Na época, a prisão de San Miguel tinha população de 1.875 detentos, quando sua capacidade era de 632, o que equivalia a 197% de superpopulação.
O Chile é o país com a mais alta taxa de encarceramento da América Latina, com 318 internos para cada cem mil habitantes, frente à taxa latino-americana de cem a 150 presos, em média, e da europeia, de 60 a cem presos, em média. Em 2012, o governo criou a Unidade de Proteção e Promoção dos Direitos Humanos de Gendarmeria, a instituição penitenciária chilena, para diminuir os maus tratos e as torturas registradas nas prisões locais.
Apesar disso, os avanços em matéria penitenciária ainda estão longe de seguirem um projeto de política pública integral, capaz de se traduzir em uma satisfação das necessidades das pessoas privadas de liberdade e, com isso, em um maior ajuste dos padrões internacionais de direitos humanos, conclui o Informe Anual de Direitos Humanos da Universidade Diego Portales.
Para Incalcaterra, essas situações se devem ao fato de “a crise carcerária não ser uma prioridade nas agendas e nos programas de governo na região”. Ele afirmou que existe falta de transparência e fiscalização regular e independente dos centros penitenciários, como ferramenta fundamental para a prevenção da tortura e dos maus tratos e a melhoria estrutural dos sistemas carcerários. Embora as pessoas privadas de liberdade sejam um dos grupos mais vulneráveis da sociedade, “também são um dos mais impopulares”, acrescentou.
Espinoza pontuou que, nos últimos cinco anos, aconteceram reformas em países da região que apontam majoritariamente para dotar o sistema penitenciário de maior institucionalidade. Mas, a crise leva a pensar em uma série de medidas que devem confluir para avançar rumo a uma solução definitiva e de médio e longo prazos. Por exemplo, o desenho de uma política pública em matéria de segurança que contenha componentes de reinserção social com chave para garantir o êxito de sua implantação, argumentou.
Para Incalcaterra, também “é imperativo que os Estados e a sociedade em geral tomem consciência de que a crise carcerária vivida em seus países não afeta somente as pessoas privadas da liberdade, mas se estende às suas famílias e a toda a sociedade em conjunto. As prisões são o reflexo de uma sociedade”, concluiu. Envolverde/IPS