O Committee on International Economic and Policy Reform, um grupo de especialistas independentes, publicou em setembro o relatório Repensando os Bancos Centrais (Rethinking Central Banking). O comitê é formado por economistas acadêmicos, ex-presidentes de bancos centrais e ex-ministros de finanças. Entre eles estão Barry Eichengreen, Mohamed El-Erian, Arminio Fraga, Carmen Reinhart, Kenneth Rogoff, Raghuram Rajan e Dani Rodrik.
Na contramão do rame-rame palpiteiro midiático que assola o debate brasileiro, o relatório faz uma avaliação sem rebuços nem preconceitos do desempenho dos bancos centrais no período pré-crise e aponta para mudanças no escopo das políticas nos próximos anos. Entram na dança a independência dos bancos centrais e seus bravos escudeiros, as políticas de metas de inflação e a adoção das taxas de câmbio flexíveis.
O relatório reconhece que assiste razão aos críticos quando denunciam o fracasso dos bancos centrais em administrar de forma adequada os riscos do sistema financeiro. Isto deve ser debitado em boa medida ao foco estreito na política de metas e ao descuido com as medidas prudenciais, hoje invocadas por gregos e troianos. Além disso, a visão convencional assume a inexistência ou a irrelevância dos efeitos internacionais negativos das políticas monetárias expansionistas executadas por países de moedas conversíveis, fenômeno observável a olho nu em um mundo aberto ao movimento de capitais.
Na visão do comitê, a dupla meta de inflação-taxas de câmbio flutuantes não possui credenciais para cuidar dos efeitos perversos da volatilidade dos fluxos internacionais de capital. No Brasil, esta questão suscitou a formação de uma barreira de argumentos pseudocientíficos e, não raro, escandalosamente interessados.
O economista Claudio Borio, do Banco de Compensações Internacionais (BIS), já desvelou a verdade que a maioria dos analistas comprometidos com a banca se esforça por esconder sob a rica tapeçaria de seus inefáveis saberes. No olho do torvelinho, ou seja, na gênese, desenvolvimento e configuração da crise financeira, está o fluxo bruto de capitais privados originários dos Estados Unidos e da Europa. A morfologia dos movimentos de capitais é intrinsecamente pró-cíclica em sua recorrência maníaca, que vai da abundância de grana estrangeira às paradas súbitas e daí às crises financeiras e bancárias. Esse “(eterno?) retorno do mesmo” está determinado pela interação entre liberalização das contas de capital, a emergência das economias “emergentes” como polos de atração da movimentação financeira, e o papel dos Estados Unidos como provedor de ativos líquidos de “última instância”.
A interpenetração financeira suscitou a diversificação dos ativos à escala global e, assim, impôs a “internacionalização” das carteiras dos administradores da riqueza, o que coloca formidáveis desafios às políticas monetárias. Diante da enxurrada de capitais empenhados na arbitragem com taxas de juro e na especulação desaçaimada com suas moedas, os emergentes lutam para evitar a formação de bolhas de crédito e tratam de tornar óbvios os efeitos indesejados e nefastos da valorização cambial.
O mundo não convergiu para o regime de taxas flutuantes. Muito ao contrário, a coexistência entre regimes de taxas de câmbio flutuantes e taxas administradas ou fixas tornou-se a marca registrada da economia mundial. O número de países que adotaram a “ancoragem” no dólar ou numa cesta de moedas aumentou consideravelmente. Depois da crise asiática, as economias da região, particularmente a China, retomaram as estratégias exportadoras com forte acumulação de reservas e medidas bastante pragmáticas de controle de capitais.
A entrada da China e de outros emergentes como protagonistas importantes no comércio internacional de manufaturas promoveu um forte movimento deflacionário, contribuindo para a estabilidade de preços no âmbito da economia global. Os preços das commodities permaneceram subjugados até o fim da década de 2000. Depois disso a situação mudou. Na posteridade da crise, os preços das commodities passaram a responder elasticamente aos impulsos da demanda chinesa e, sobretudo, aos excessos de liquidez engendrados pelas ações dos bancos centrais das economias desenvolvidas.
As mutações na geografia manufatureira e a dominância dos fluxos financeiros transnacionais foram sumariamente desconsideradas pelo pensamento dominante, embevecido com o desempenho dos bancos centrais independentes e de suas políticas monetárias na batalha contra a inflação. Torna-se obrigatório indagar se os bancos centrais vão reconsiderar as teorias e modelos que até agora sustentaram suas decisões de política monetária.
* Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor, consultor editorial de Carta Capital.
** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.