Desmandos, nazismo e democracia

Madri, Espanha, maio/2013 – O desmando domina de forma crescente as atitudes e opiniões políticas na Espanha e, com frequência, como se fosse um gene nacional, aparece nos comportamentos sociais.

Existem na Espanha motivos de sobra para a indignação e inclusive para a raiva, como é o caso dos investidores fraudados ou os despejados de suas moradias. Mas é necessário fazer um esforço para identificar as linhas vermelhas do protesto e da repressão, além das quais se adivinha a escalada irracional da violência.

O debate sobre a legitimidade democrática ou não de certas formas de violência, que poderíamos chamar de suaves e sem derramamento de sangue, surgiu com força em razão dos escrachos.

Trata-se de uma prática injusta e também perigosa, como alertou o ex-primeiro-ministro Felipe González. Por isso assistimos a uma escalada entre os que pretendem demonstrar a legitimidade democrática dos assédios a políticos do governante Partido Popular (PP) e os que buscam desqualificá-los com argumentos preocupantemente antidemocráticos.

Concordo com os que alertam que o singular dos desmandos é que, ao acontecer diante das casas (e das famílias) de representantes de um partido concreto, exercem uma pressão injusta e de forte poder intimidatório. Que os filhos dos apontados tenham de ouvir os gritos que qualificam seus pais de assassinos ou criminosos não pode ser uma ação política amparada pela liberdade de expressão.

Aqueles que justificam os escrachos alegam que são os políticos, ao não resolverem o problema social dos despejos, que não deixam outra alternativa para que se façam ouvir. Afirmam que escrachar é a reação raivosa de um setor diante da incapacidade mostrada pelos representantes do povo para legislar conforme a vontade dos cidadãos.

Exposto o problema e a necessidade de resolvê-lo, o que faz o governo? Ignora o parecer majoritário das pesquisas e a rejeição de muitos juízes e magistrados, e converte em papel molhado quase um milhão e meio de assinaturas da Iniciativa Legal Popular (ILP) pedindo que seja aceita a dação em pagamento retroativo das moradias, a paralisação dos despejos e a aprovação do aluguel social.

É certo o sentimento de impotência e desespero dos que são forçados a abandonar suas casas (115 por dia).

Certa também é a parte de responsabilidade que nessas situações corresponde aos bancos que concederam hipotecas com cláusulas abusivas e avaliações infladas.

A dação em pagamento deveria ser consubstancial à natureza jurídica do contrato hipotecário, pois é o próprio bem hipotecado a garantia do crédito. Se o banco, por meio de uma avaliação própria ou afim, deu ao imóvel um valor superior ao real, é seu erro (ou engano) e seu problema.

E se envolve como garantia outros bens e patrimônios, então está desvirtuando a natureza do contrato hipotecário, a meu ver de uma maneira injusta e para obter mais lucro. Teríamos todos economizado o fator bolha imobiliária desta pavorosa crise se a dação em pagamento fosse preceptiva e obrigatória. Teria impedido os desmandos de construtores e bancos.

Não menos certa, além de explicável, é a impotência ao ver como uma ação tão cívica e democrática como a ILP, assinada por 1.402.854 cidadãos, é menosprezada e ignorada pelo grupo parlamentar que tem a maioria absoluta.

A insensibilidade dos partidos, antes dos socialistas e agora do PP e de seu governo, é óbvio que está na gênese do problema, como apontou recentemente a sentença do Tribunal de Justiça da União Europeia ao considerar que o regime hipotecário espanhol é abusivo e injusto.

Tudo isso faz prever a continuidade do conflito na rua e na sede do parlamento.

Reconhecido e aceito tudo isso, que explica o apoio amplamente majoritário da sociedade espanhola ao que considera justa causa dos despejados, o escracho continua sendo exagero ilegítimo que não tem nem pode pretender o amparo da lei.

Porém, neste assunto há algo preocupante: a reação do partido do governo ao qualificar os atos de escracho como “nazis”. E os excessos sempre são mais censuráveis quando protagonizados a partir do poder.

No dia 13, María Dolores de Cospedal, presidente da comunidade autônoma de Castilla-La Mancha, rotulou os escrachos de “nazismo puro”. Também de modo imprudente afirmou que essa prática “recorda a Espanha dos anos 1930”.

Outros dirigentes populares se somaram à (des)qualificação. Esperanza Aguirre, presidente da comunidade autônoma de Madri, afirmou que aqueles contrários ao despejo são “energúmenos… seguidores das juventudes hitlerianas ou das patrulhas castristas em Cuba”. Outros os chamaram de “imitadores da bandidagem dos seguidores da ETA no País Basco”.

Como apontaram alguns comentaristas, a reiterada utilização do termo “nazismo”, por parte de membros do PP contra os ativistas da Plataforma dos Afetados pela Hipoteca, é perigosa porque banaliza o que realmente significa o nazismo.

Equipará-los com os nazistas e os colaboradores da ETA não é apenas um excesso inaceitável, mas também um insulto às vítimas do nazismo e da ETA. E aos 59% dos espanhóis que, por aceitarem os escrachos, teriam de ser considerados nazistas ou “etarras”.

Que não seja equiparável à ETA e aos nazistas não converte em democrática esta forma de ação.

Contudo, como se pode colocar no mesmo nível o que constitui uma infração administrativa, ou talvez uma falta de coação, e o extermínio de 11 milhões de pessoas? Um partido democrático, e mais, no exercício do poder, não pode recorrer a tal desqualificação dos que discordam dele, sem provocar um arrepio. Envolverde/IPS

* Guillermo Medina é jornalista e ex-parlamentar espanhol.