Desmatamento vai aumentar com voto da Câmara sobre Código Florestal

O desmatamento vai aumentar. Aumentou com a expectativa de aprovação das mudanças no Código Florestal. Vai aumentar mais com a aprovação na Câmara. O novo código é uma licença prévia para desmatar. A licença permanente virá, se o Senado aprovar o que a Câmara fez e o Executivo sancionar.

Não por outra razão, ontem, quando estavam seguros da vitória os ruralistas passaram a reconhecer que para eles não dá para produzir sem desmatar. Anistia indiscriminadas e injustificadas alimentam a certeza da impunidade. Esse tipo de abertura desmoraliza qualquer lei e qualquer regra. É um risco moral, além de ser um risco real e imediato.

Aliados dos ruralistas que preferem aparecer como “moderados”, “independentes”, ou uma “terceira via” entre os ambientalistas e os ruralistas, quando arrolam as virtudes do que se passou na noite de ontem na Câmara, mostram que a distância que os separa dos ruralistas é quase nenhuma, mas é enorme a que os aparta dos ambientalistas.

Dois argumentos muito usados por eles após a votação para desqualificar as críticas ao que foi aprovado merecem resposta.

A primeira diz que agora o agronegócio está legalizado. É uma falácia lógica e jurídica.
Desde o início da teoria democrática do direito, sempre esteve claro que a liberdade se dá no silêncio da lei. Thomas Hobbes celebrizou e eternizou essa expressão, que significa dizer: qualquer ato que a lei não proíba explicitamente está permitido. No caso, não havia silêncio da lei: a proibição era gritante. Na maioria dos casos alcançados pelas mudanças, o ato ilegal foi realizado na existência de lei que o vedava e não se pode alegar desconhecimento da lei. Logo só caberia uma forma de legalização legítima: a obediência à lei, a retificação dos atos ilegais, o pagamento das multas pertinentes. Reescrever a lei para enquadrá-la aos desígnios de um grupo, em detrimento do interesse coletivo, não é legalizar. É relaxar a lei.

O argumento da legalização, tal como vem sendo usado, só valeria para casos como daqueles que respeitavam a lei na Amazônia, mantendo reservas de 50%, quando a reserva foi elevada para 80%. Aí, seria justificada a não punição e a situação poderia merecer um programa específico para ajudar os produtores a se enquadrarem na nova regra. Até admitir-se-ia a consolidação dessa situação – ou seja não exigir a recomposição dos 20% faltantes – quando comprovadamente o desmatamento até 50% tivesse ocorrido antes da nova regra. Evitaria a retroatividade da regra. O argumento da retroatividade é usado convenientemente, apenas a favor dos que descumpriram a lei. Mas o que este projeto aprovado pela Câmara e que ainda deve passar pelo Senado e pelo crivo presidencial faz, é retroagir a favor deles. Por coerência, a nova lei só deveria valer para atos e situações posteriores a sua entrada em vigor.

Nos casos de ilegalidade pura e simples, legalizar só pode significar “enquadrar na lei” e arcar com os custos de tê-la desrespeitado. Mas o que estão fazendo é “enquadrar” a lei à prática ilegal. Estreitar a regra para permitir que os que desrespeitaram a lei vigente sejam considerados “legais” posteriormente, em virtude de nova lei. Um grave precedente, que desmoraliza a lei.

Um exemplo do efeito de desmoralização que tal atitude pode ter é o do “município verde” no Pará. Recentemente, 80 municípios do Pará aderiram a este programa, que inclui um “pacto vinculante”, o qual impõe metas para alcançar o desmatamento zero. Resultado de uma longa caminhada, que passou pelo Pacto de Desmatamento Zero, em Paragominas, e pelo programa “Carne Legal”, lançado pelo Ministério Público Federal do Pará. A anistia e o afrouxamento da lei aprovados pela Câmara, tiram toda capacidade de persuasão das lideranças que vinham conseguindo atrair produtores e madeireiros para esse pacto. Por que aderir, se os que se comportam mal ganharam uma lei para facilitar sua vida? Outro exemplo claro de desmoralização é o aumento do desmatamento induzido pela expectativa da anistia.

O segundo argumento diz que criticar decisão do Congresso significa não aceitar a via democrática. Também é falso. Desconsidera as numerosas falhas que podem ocorrer no funcionamento da democracia representativa que permitem que se formem maiorias ilusórias ou desvinculadas da maioria social. Uma cadeia de disfuncionalidades que vão desde falhas na representatividade do processo eleitoral, até o poder desigual dos interesses abonados e dos lobbies no processo legislativo podem produzir más decisões, que ferem princípios democráticos fundamentais. Fazem com que uma instituição da democracia, como o Congresso certamente é, opere de forma não democrática, oligárquica ou monopolista. Isso ocorre quando a maioria do parlamento é capturado por interesses específicos, que têm mais poder e influência política do que representatividade social. Os 410 votos, no caso, representaram um grupo específico da sociedade brasileira e não a “vontade popular”. Outros grupos, certamente mais numerosos, se manifestaram, mas não foram ouvidos e acabaram representados por um punhado de 63 votos. Essa minoria foi a expressão simbólica da voz cortada de todas as partes da sociedade brasileira que desejavam uma solução pluralista, técnica e que de fato conciliasse preservação e produção, de forma justa e durável.

Deve-se considerar também a questão da substância e da qualidade das decisões democráticas. O Congresso contemporâneo está obrigado a buscar fundamentação técnica e científica para decidir sobre questões, como esta, complexas, que têm múltiplos e conhecidos fundamentos técnicos e científicos. Na entrada da segunda década de um século marcado por desafios que exigem respostas prontas, precisas e cautelosas das sociedades, decisões com o alcance desta que está sendo tomada, não poderiam desrespeitar parâmetros técnicos e científicos.

A Câmara dos Deputados desprezou, porém, a opinião de técnicos e cientistas e o depoimento de 10 ex-ministros do Ambiente, que participaram de toda a evolução legislativa de conteúdo ambiental, desde a primeira versão do código florestal. Desprezou o alerta dos cientistas e a experiência de ministros que cobriam o mais amplo espectro político possível: vinham de distintos regimes, desde a ditadura, passando pela transição pré-88, e de todos os governos da terceira república, inaugurada com a Constituição de 1988. Havia ministros de diferentes partidos e ministros sem filiação partidária. Disseram consensualmente: a proposta é ruim para o país e para a agricultura competitiva e sustentável. Pediram que se adiasse a votação e se redigisse um projeto à altura dos desafios que o país tem pela frente, e de suas vocações: produção agropecuária – que só pode ser sustentável, em toda a sua cadeia – e biodiversidade, que precisa ser reconhecida como um valor econômico superior. Foi, portanto uma decisão, na substância, sem qualidade. Ser da maioria não a exime de seus defeitos. Nem criticá-la significa atitude antidemocrática. Muito pelo contrário, inclusive porque o processo ainda não acabou. Fazem parte da instituição democrática a revisão pelo Senado e o veto presidencial. São parte essencial do sistema de pesos e contrapesos da democracia.

Os comunistas que ainda se lembrem da doutrina que outrora professaram certamente terão sabido um dia o sentido do conceito de “falsa consciência”. Noção similar foi desenvolvida pela análise política contemporânea. Nem sempre os grupos e as pessoas têm a perfeita compreensão de seus interesses de longo prazo, seus interesses duráveis e essenciais. Esse fenômeno se explica pelo fato de que mergulhados na prática cotidiana e pressionados por problemas presentes, de curto prazo, perdem a visão mais longa e confundem questões tópicas com seus interesses permanentes. Esse é o caso daqueles produtores sérios, que querem respeitar a lei – muitos já a respeitam – e precisam ter produção reconhecidamente sustentável para terem acesso aos melhores mercados, mas que se deixaram representar por aqueles que só têm interesses passageiros, de curto prazo. As mudanças atendem ao interesses dos que só têm interesse de curto prazo. Produtores predatórios, que superexploram a terra, tiram dela o máximo, no menor prazo e, quando ela se exaure, pelos maus tratos, quando a água se vai, abandonam tudo e saem em busca de terras virgens para começar novamente esse ciclo curto de prosperidade passageira e devastação permanente. Para esse tipo de produtor, sem dúvida, não dá para produzir sem desmatar.

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** Publicado originalmente no site Ecopolítica.