O sonho de Raphael, 17, era ser professor de capoeira. O jovem também já começava a pensar em estudar educação física. Em 31 de março de 2005, os sonhos e projetos de vida de Raphael e de mais 28 pessoas chegaram ao fim pelas mãos de um grupo de policiais que percorreu de carro bairros dos municípios de Nova Iguaçu e Queimados, disparando contra quem encontravam.
Para a militante pelos direitos humanos e mãe de Raphael, Luciene Silva, a perda acabou fazendo com que ela “caísse na realidade” e percebesse como era a região onde vivia. O trauma e o encontro com outros familiares que haviam vivenciado a mesma situação abriram as portas para que Luciene entrasse de vez na luta pelo enfrentamento da violência e por justiça. Em entrevista ao Notícias & Análises, Luciene, que atualmente é presidente do Conselho Municipal de Segurança, Direitos Humanos e Cidadania de Nova Iguaçu, fala da difícil tarefa de acabar com a cultura do extermínio, das execuções que continuam a ocorrer na baixada fluminense e das dificuldades hoje enfrentadas por familiares de vítimas para denunciar crimes e fazer valer seus direitos.
Notícias & Análises: Há seis anos, seu filho e mais 28 pessoas foram executadas de forma aleatória por policiais militares. Fale dos diferentes impactos dessa perda e sobre como foi o encontro com outros familiares de vítimas. No que isso ajudou?
Luciene Silva: Só quem vive uma situação dessas é que sabe o quanto é doloroso e qual é o tamanho do abalo. Para mim e para minha família, a perda até hoje não foi superada. O pior foi a forma como tudo aconteceu: primeiro tudo parece normal, você está conversando com seu filho tranquilamente. Dali a 30 minutos ele é morto sem nem saber o porquê. É como perder um membro do corpo. Depois da morte do Raphael, eu caí na realidade do lugar onde eu vivia. Porque, na verdade, eu vivia num mundinho e só dei de cara com a realidade, com aquilo que acontecia bem perto de mim, quando meu filho foi assassinado. Foi a partir daí que conheci outras mães que tinham perdido seus filhos em situações parecidas. Foi então que senti que não estava sozinha. Me uni a estas pessoas e começamos a tomar atitudes diante daquilo que tinha acontecido com a gente.
N&A: Quais foram as principais dificuldades encontradas por você para ter acesso à Justiça?
LS: A Justiça é muito lenta. A sorte que tivemos é que a chacina da Baixada foi um fato de grande repercussão na mídia nacional. Isso fez com que houvesse pressão de todos os lados para que o caso fosse solucionado. Mas a grande dificuldade que enfrentamos foi no segundo julgamento, quando as coisas já tinham esfriado para a mídia e muitas pessoas esqueceram do que houve. Tivemos julgamentos acontecendo até quatro anos depois dos crimes. Sem a visibilidade que a imprensa dá, é, sem dúvida, mais complicado que a Justiça seja feita. E eu presenciei um exemplo claro disso. Na época da chacina, uma mãe, que teve seu filho assassinado um ano antes, me encontrou por meio de uma defensora pública, depois de correr atrás de familiares de vítimas da chacina por muito tempo. Ela queria se unir a nós para lutar pela condenação do assassino de seu filho, o mesmo que participou da morte do Raphael. Se a justiça não tivesse sido tão falha no caso dessa mãe, não haveria como esse criminoso ter tirado a vida do meu filho. O mesmo aconteceu agora no caso Juan: somente um dos envolvidos tinha 18 “autos de resistência” nas costas.
N&A: Há alguma movimentação de familiares das vítimas no sentido de responsabilizar diretamente o Estado pelo que aconteceu?
LS: Desde o ano em que aconteceram as mortes, as famílias entraram com uma ação contra o Estado. Mas a Justiça corre lentamente. Além disso, o Estado contesta os valores. Não que o dinheiro vá pagar uma vida perdida. Mas veja, por exemplo, os rios de dinheiro que o governo investe nos Jogos Olímpicos e na Copa. Estes valores o Estado não contesta. Contestam nossas indenizações porque querem pagar o mínimo possível. Enquanto isso, os familiares das vítimas de Vigário Geral até hoje não receberam. O governo está pagando precatórios de 1998. E paga quando acha que deve pagar.
N&A: A luta por Justiça transformou você em uma militante pelos direitos humanos. Como foi essa transformação e qual a importância dessa luta para você hoje?
LS: Antes de o Raphael falecer, eu já atuava na área social. Além disso, meu pai era comunista. Ele sempre militou e sempre falava para mim de igualdade social. Mas foi quando aconteceu o assassinato do meu filho que eu comecei realmente a me envolver com a militância contra a violência no lugar onde eu vivo. Encontrei outras mães que passaram por situações parecidas com a minha, adquiri conhecimento e aí se abriu para mim um mundo que eu não conhecia. Fui a lugares que jamais esperava ir. Tenho o orgulho de ser hoje presidente do Conselho Municipal de Segurança, Direitos Humanos e Cidadania de Nova Iguaçu. Isto me faz ter contato direto com essa polícia. E não é fácil. Antes disso, eu fui convidada diversas vezes para um café da manhã que acontece no 20º Batalhão e adiei o máximo possível. Mas tive que acabar indo. Me apresentei e disse o quanto era difícil estar ali. Tive que superar.
N&A: O que mudou na Baixada seis anos depois da chacina? Houve conquistas por parte dos familiares das vítimas?
LS: É muito difícil desconstruir essa cultura do extermínio, principalmente, na Baixada. Conquistas aconteceram: houve a criação da Secretaria Municipal de Assistência Social e Prevenção da Violência de Nova Iguaçu (Semaspv), brigamos para que fosse criado o Conselho de Segurança de Nova Iguaçu. Mas os casos de violência continuam acontecendo nas periferias da cidade. Elas só não têm a mesma repercussão porque são mortes “a varejo”. Além disso, tem essa coisa grave dos tais “inocentes”. A imprensa só reclama, só da destaque a um assassinato se o morto não tiver relação nenhuma com a criminalidade. Se tiver um menino que é ligado ao tráfico e ele é morto pela polícia, a mídia legitima. É um absurdo. Porque as pessoas que matam um garoto que é traficante, matam o dependente, amanhã matam também o seu filho que não é nem uma coisa nem outra. Para eles dá no mesmo. É a mesma coisa que matarem uma barata. Porque o jovem pobre é encarado como criminoso em potencial. E dentro desta lógica existem mães que não denunciam o crime porque realmente acreditam que seus filhos mereciam ser mortos. Os policiais sempre falam em auto de resistência, quando na verdade, não houve nem mesmo troca de tiros. O que acontece é execução. E quando se tira a vida de um garoto desses se tira também qualquer tipo de possibilidade de ressocialização, qualquer chance de mudança. Aí você tem uma mãe que tem que conviver com o fato de que seu filho foi executado, às vezes sabendo quem foi, e não poder falar, não poder gritar. O que queremos é continuar despertando as comunidades para o problema, continuar dizendo às pessoas que elas não devem ter medo de falar e denunciar.
* Publicado originalmente no Observatório das Favelas.