Em 1987, um facão afiado entraria para a história.  A índia Tuíra desafiava o presidente da Eletronorte, em razão da construção de duas hidrelétricas.

Índia Tuíra e seu facão.

Para defender o seu povo e seu habitat, aos olhares de uma plateia atônita, composta de ambientalistas, convidados e centenas de jornalistas estrangeiros que cobriam o I Encontro dos Povos do Xingu, Tuíra partiu com o seu facão na direção do homem branco que insistia em construir as duas represas: Babaquara e Kararaô.

Hoje, o mesmo embate se redesenha e o nome Kararaô foi alterado para Belo Monte.  A UHE Belo Monte vem com o slogan governamental de terceira hidrelétrica do mundo. Com o retorno dessa discussão, são inúmeros os artigos, os protestos dos índios, o engajamento de cineastas hollywoodianos, paralizações nos canteiros de obras, embargos, demissões, muita encrenca no Ibama, a falta de licença de instalação, a saída de consorciados e, por último, a manifestação da Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Basta apenas um mergulho nas águas turvas do Rio Xingu naquele cenário lúdico, para se respeitar o Xingu, um símbolo da Amazônia.  Difícil imaginar que o percurso daquelas águas poderia gerar tanta celeuma.  É sabido que o projeto é impactante para a biodiversidade e, portanto, faz-se necessário enxergar a região do Xingu em dimensão 3D, e com o que, de fato, este ecossistema, esta rica diversidade biológica, contribui para o equilíbrio da região e do planeta.

Há um certo desrespeito no cumprimento da Constituição nos artigos que se referem aos direitos índigenas e às diversas Convenções internacionais das quais o Brasil é signatário.

Eis a questão que norteia debates a décadas: a Amazônia é intocável? De jeito nenhum! A região precisa antes de mais nada ser respeitada. Ao se analisar um mega projeto dessa natureza na Amazônia, vislumbra-se que a região passará a conviver com desastres ambientais, de maiores impactos. John Muir, naturalista norte-americano do Século 19, disse certa vez: “quando se tenta agarrar qualquer coisa isoladamente na natureza, descobre-se que ela está ligada a todo restante do Universo”.  Interferências, dessa forma, na Amazônia costumam ser desastrosas.

O Rio Xingu atravessa importantes áreas de reservas indígenas do Estado do Pará.  Habitat de espécies como o pirarucu, o maior peixe de água doce do mundo, tambaqui, golfinhos de água doce, botos, o jacaré-açu e tartarugas gigantes. Todo o rico complexo de fauna e flora está ameaçado, impossibilitando a sobrevivência de índios e ribeirinhos. Espera-se, ao menos, que as ações de mitigação de impactos socioambientais deste empreendimento não sejam maquiadas em projetos e pareceres.

Do outro lado do mundo Xangai, a “Cidade Luz” asiática, mais parece um vagalume.  Embora a China tenha a maior hidrelétrica do mundo, paradoxalmente tornou-se referência em energia eólica.  Segundo novo relatório divulgado pelo Greenpeace, o Chinese Renewable Enèrgy Industries Association (Creia) e a Global Wind Energy Council (GWEC), a capacidade instalada de energia eólica na China, até 2020, será equivalente a treze vezes a capacidade da UHE Três Gargantas, no Rio Yangtse.

Torna-se necessário repensar outras fontes energéticas neste país ensolarado e abençoado por Deus.  Ou pensar, como alternativa às grandes hidrelétricas, a construção de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), de menor impacto e bem mais aceitáveis que as termoelétricas.  As políticas públicas necessitam avançar muito mais em alternativas energéticas mais limpas e renováveis.  Conforme publicado na imprensa, segundo a Associação Brasileira de Energia Eólica, o país investirá R$ 25 bilhões em 141 projetos no Nordeste.  E a MP 517, que trata de várias discussões no Congresso, prorroga o Programa de Incentivos às Fontes Alternativas.

Ocorre que o governo quer investir mais em energia nuclear: muitas usinas estão programadas para o Nordeste, mesmo depois do acidente do Césio 137.  Um país que não controla o destino final de uma cápsula radioativa projeta construir mais usinas?  É preciso reavaliar, também, a energia nuclear, diante dessa dimensão de desastres naturais cada vez mais comuns.  Até a Alemanha quer rever seu aval para Angra 3, depois que o Japão perdeu o controle sobre Fukushima.

O Brasil talvez chegue aos parâmetros de sustentabilidade quando deixar de construir usinas nucleares ou implantar projetos faraônicos na Amazônia.  Não faz muito tempo, Daniel Ludwig (Jari) e Henry Ford (Fordlândia) investiram em modelos de desenvolvimento de efeitos adversos para a região.  Vimos outros exemplos dos que construíram as usinas hidrelétricas salvando-se alguns macaquinhos, em operações desastrosas.

Na atual conjuntura, o facão afiado é apontado para o licenciamento e Belo Monte será o teste drive da legitimidade e da eficiência ou não da política ambiental brasileira.

* Fernanda Figueiredo é ambientalista, participou do I Encontro dos Povos do Xingu e do Comitê de Defesa da Amazônia, foi consultora do Ministério do Meio Ambiente.

** Publicado originalmente no site Amazônia.org.br.