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Domínio islâmico é inevitável, “mas não preocupante”

Manifestantes na Praça Tahrir fazem as orações das sextas-feiras. Foto: Khaled Moussa al-Omrani/IPS

Cairo, Egito, 4/1/2012 – Figuras políticas laicas do Egito temem que este país se converta em uma teocracia, após a esmagadora vitória dos partidos islâmicos no segundo turno das eleições legislativas. Porém, analistas não acreditam que ocorram mudanças radicais. O Partido Liberdade e Justiça (PLJ), da Irmandade Muçulmana, é o grande vencedor das primeiras eleições legislativas realizadas no país desde a queda do regime de Hosni Mubarak.

“Ainda que os partidos islâmicos tenham assegurado ampla maioria parlamentar, duvido que aprovem leis que tenham impacto profundo na sociedade contemporânea egípcia”, disse à IPS o analista político Mohamed Abo Kraisha, editor do jornal estatal Al-Gomhouriya. No primeiro turno, em novembro de 2011, os islâmicos obtiveram um esmagador triunfo. O PLJ ficou com 38% dos votos, enquanto o Partido Nour, do ramo falafista (integrista) do Islã, ficou em segundo lugar, com surpreendentes 24%.

Um segundo turno, nos dias 14 e 15 de dezembro, apresentou resultados parecidos: PLJ e o Partido Nour receberam 36% e 29%, respectivamente. Desta forma, as forças políticas islâmicas ficarão facilmente com mais de dois terços do parlamento, o que lhes garante domínio sobre a futura atividade legislativa do país. Os partidos seculares (liberais, esquerdistas e nacionalistas) foram vencidos claramente nos dois turnos. Um terceiro, e último, aconteceu nos dias 3 e 4 deste mês, para o qual também se espera resultados semelhantes aos anteriores.

A esmagadora vitória eleitoral islâmica traz preocupação para as principais figuras seculares. Os maiores temores são de que um parlamento dominado por religiosos adote leis que afetem o lucrativo setor turístico do Egito, em particular a atividade nas praias, pois os muçulmanos mais radicais exigem vestimentas “decentes” para as mulheres. Também temem um impacto negativo no setor bancário, que depende da cobrança de juros, algo proibido no Islã, e, ainda, nas liberdades pessoais e na comercialização de bebida alcoólica.

“Vão nos obrigar a usar o hiyab (véu islâmico). Será igual ao Afeganistão”, disse uma jornalista egípcia de 30 anos. Pouco antes das eleições, o multimilionário copto cristão Naguib Sawiris, fundador do partido liberal Egípcios Livres, declarou, em entrevista à televisão, que este país se arriscava a trocar o regime de Mubarak por uma “ditadura nova e religiosa”. No entanto, analistas indicam que estes temores não têm fundamento. Acreditam que a Irmandade Muçulmana, e por extensão o PLJ, têm muita inteligência política para não adotar mudanças drásticas, particularmente na atual conjuntura nacional e regional.

“Duvido que um parlamento liderado pelo PLJ aprove uma legislação radical que tenha impactos no turismo, no sistema bancário ou nas liberdades pessoais”, disse Abdel Ghani Hindi, coordenador do Comitê Popular pela Independência de Al Azhar e membro fundador da União de Jovens Revolucionários, formada por vários movimentos surgidos na revolução de janeiro de 2011. “São bastante inteligentes. Não vão querer perder a confiança da população agora, realizando mudanças drásticas. Qualquer mudança que fizerem será muito, muito gradual”, afirmou Hindi à IPS.

Com ele coincide Abo Kraisha, para quem a Irmandade conta com uma longa história política e reputação de ser pragmática. Embora a organização tenha sido formalmente proscrita pelo Estado na década de 1950, e assim tenha sido mantida até a revolução de janeiro do ano passado, nunca deixou de estar politicamente ativa, inclusive fornecendo serviços públicos aos egípcios, o que aumentou sua popularidade.

“A Irmandade faz política desde sua criação, em 1928, e, portanto, tem mais experiência do que qualquer outro no cenário político do Egito”, destacou Kraisha. “Essa organização compreende as dinâmicas interna e externa muito bem para não aprovar uma legislação radical que possa corroer seu amplo apoio político e dar munição aos seus inimigos, tanto em nível local quanto internacional”, acrescentou. Para ele, “além disso, os islâmicos aprenderam, com base em experiências anteriores, que não podem adotar mudanças radicais sem repercussões severas”. Kraisha também citou o exemplo do triunfo eleitoral, em 2006, do Movimento de Resistência Islâmica (Hamás) na vizinha Faixa de Gaza, que motivou um embargo internacional mantido até hoje.

Embora a Irmandade possa ter ganho certa reputação de pragmatismo, é o Partido Nour o que mais medo provoca nos laicos. “Ao contrário da Irmandade, os salafistas fazem declarações contraditórias sobre vários temas polêmicos, sobre os quais não parecem ter uma posição única e clara”, alertou Hindi. “Alguns líderes salafistas disseram que não pressionariam por grandes mudanças, enquanto outros afirmam que esses temas exigem transformações radicais”, acrescentou, lembrando que esta falta de consistência “continua preocupando seus críticos”.

Apesar disso, Kraisha acredita que os partidos salafistas como o Nour não teriam força suficiente sozinhos para adotar legislações que não tenham apoio da mais pragmática Irmandade. “Duvido que os salafistas possam impor uma legislação ao resto do parlamento. Poderão ter posições firmes sobre determinados assuntos, mas o PLJ, com mais cadeiras na assembleia, servirá de influência moderadora”, opinou.

Rapidamente a Irmandade se apressou em garantir à população egípcia, e aos seus muitos críticos, que se voltará aos problemas mais graves do país, como economia e segurança, e não aos polêmicos, como o álcool ou a vestimenta feminina. “O partido tem um programa para ativar todos os setores da economia nacional, em uma situação muito ruim após 30 anos de regime autocrático”, disse Hamdi Gazar, dirigente e membro fundador do PLJ. “Isto, naturalmente, inclui o setor turístico, que tradicionalmente é a principal fonte de divisas do Egito”, afirmou à IPS. Envolverde/IPS