Defensoria Pública da União em São Paulo (DPU-SP) exige na Justiça que rede de lojas de moda feminina cheque condições de trabalho de terceirizadas e cobra R$ 300 mil de danos morais coletivos por flagrante de trabalho escravo.
A Defensoria Pública da União em São Paulo (DPU-SP) ajuizou ação civil pública contra a empresa de vestuário Collins, envolvida em flagrante de trabalho análogo à escravidão em agosto do ano passado.
Trata-se da primeira ação coletiva apresentada pelo órgão ao Judiciário trabalhista. “Por falta de defensores, não há como atuarmos também na Justiça do Trabalho. Contudo, quando há uma relação com questões de direitos humanos, como é o caso do tráfico internacional e do trabalho escravo, nós atuamos”, observa Marcus Vinícius Rodrigues Lima, do Ofício de Direitos Humanos e Tutela Coletiva da DPU-SP, que moveu a ação.
Protocolada no dia 4, a ação atribui o crescimento “em progressão geométrica” da rede de lojas de vestuário feminino Collins à “terceirização ilícita” (veja gráfico abaixo com dados sobre a evolução da empresa). “A empresa fez uso abusivo do poder econômico, utilização de trabalho escravo para aumento de lucro”, sustenta Marcus, que confirmou o envio de ofício ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para que os indícios de concorrência desleal sejam apurados.
Por meio da ação, a DPU-SP cobra da Collins a verificação das condições de trabalho nas quais as peças da respectiva marca estão sendo confeccionadas – sob pena de multa de R$ 50 mil por oficina de costura, caso seja detectado trabalho escravo. Na visão do defensor Marcus, a empresa se valeu da chamada “cegueira deliberada”, ou seja, fechou os olhos para a situação das costureiras e costureiros porque obtinha lucro com isso.
A DPU-SP exige também o pagamento de R$ 300 mil por dano moral coletivo, para que sejam revertidos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). “Este valor tem caráter pedagógico para que outras empresas não repitam essa prática, de utilização de mão-de-obra escrava”, explica Marcus. Antes de decidir pela via da ação civil pública, a DPU-SP chegou a sugerir um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), mas a Collins ignorou a proposta.
O principal fundamento usado pela defensoria é a investigação realizada pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE-SP) que rastreou a terceirização ilícita de toda a produção da Collins. Operação realizada em agosto de 2010 constatou que a empresa subcontratava oficinas que exploravam trabalho análogo à escravidão.
Na ocasião, a SRTE-SP flagrou nove imigrantes sul-americanos oriundos da Bolívia e do Paraguai submetidos a trabalho escravo contemporâneo em oficina que fazia parte de um complexo de pequenas confecções situado na Zona Norte de São Paulo (SP). Conhecido como La Bombonera por causa da quadra de futebol de salão em seu interior, o complexo também abrigava um núcleo de produção de peças para a rede Pernambucanas e outro em que foram costurados coletes utilizados pelos recenseadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatrística (IBGE). O processo de investigação da Collins por parte dos auditores fiscais foi concluído em outubro do ano passado.
Quadro encontrado
Dividida em dois cômodos, a oficina que produzia para a Collins pertencia ao boliviano David Ovídio Aranda Mamani. Foi constatado o cerceamento do direito de ir e vir, pois trabalhadoras e trabalhadores tinham que pedir permissão aos donos das oficinas para deixar o prédio, mesmo para breves saídas, como para levar os filhos em postos de saúde. Houve inclusive relatos de casos em que empregados só puderam sair acompanhados.
A jornada exaustiva foi caracterizada por meio de depoimentos e de uma planilha que registrava turnos de, no mínimo, 14 horas diárias, de segunda a sábado. Segundo Jonas**, que costurava um vestido preto da marca Collins, o serviço começava bem cedo pela manhã e por vezes ultrapassava o horário limite das 20h, mera referência que nem sempre era cumprida. “Tinha que ser mais tempo (de costura), às vezes, porque o prazo da entrega era menor”, confirmou. As extenuantes jornadas chegavam a se estender madrugada adentro.
Os alojamentos ficavam em um corredor, nos fundos da edificação. Os dormitórios eram quartos muito pequenos, com beliches. Em alguns casos, famílias inteiras – muitas vezes com mais de um filho por casal – dormiam no reduzido cômodo único.
Quando abordados pelos auditores fiscais do trabalho, as costureiras e os costureiros davam respostas evasivas e sempre procuravam olhar para o dono da oficina, como se buscassem aprovação para o que estavam dizendo. Havia certo temor no ar. Muitos disseram à equipe da SRTE-SP que temiam serem deportados do país, já que todos estavam sem documentos.
No ambiente de trabalho e nos dormitórios, a fiação elétrica estava exposta. As instalações irregulares aumentavam o risco de incêndio, já que muitos tecidos ficavam espalhados por toda parte. As cadeiras utilizadas pelas vítimas eram precárias e improvisadas. Cada trabalhador tentava dar um “jeito”, à sua maneira, na cadeira utilizada. O barulho intenso das máquinas era abafado pela música boliviana em alto volume.
Não havia ventilação e iluminação adequadas. As instalações sanitárias eram completamente precárias e coletivas. A remuneração recebida pelos costureiros também ficava bem aquém do piso salarial firmado pelo Sindicato das Costureiras de São Paulo e Osasco.
As refeições padronizadas eram providenciadas pelos donos das oficinas. Estes últimos faziam o desconto a posteriori dos “salários” dos empregados. Os refeitórios eram improvisados, sem cadeiras e mesas suficientes para todos e o cardápio era pobre em valores nutritivos. Foram lavrados, ao todo, 25 autos de infração referentes ao quadro encontrado.
Jonas foi a única vítima que aceitou conversar com a reportagem. Solteiro e com 24 anos, migrara ao Brasil seis meses antes da fiscalização. A oficina que produzia para a Collins era a segunda em que trabalhava. Um primo dele, também empregado em uma das oficinas espalhadas por São Paulo (SP), foi quem o chamou. Na primeira oficina, trabalhou e recebeu pouco porque teve o valor da passagem descontado dos primeiros salários. O jovem não conseguiu lembrar, contudo, quanto “pagou” pelo transporte.
“Eu posso comprar o que eu gosto de comer (ele guardava no quarto bananas, refrigerante e bolachas). E temos até uma quadra de futebol”, declarou Jonas, que manifestou estar satisfeito com o trabalho na oficina. Mesmo não sendo um exímio jogador, ele disse gostar do esporte. “A gente faz até campeonato aos domingos. Uma oficina contra a outra”.
Jonas contou ainda que estava ganhando “o bastante” para enviar recursos à mãe e a uma irmã, que ficaram na Bolívia. “Agora vou ver se minha irmã vem pra cá. Ela já está na idade de trabalhar”, completou. Na terra natal, ele nunca pensou em atuar como costureiro, mas já sabia que esse era o trabalho que faria por aqui antes de chegar ao Brasil.
De acordo com a SRTE-SP, a combinação entre trabalho em ritmo intenso, moradia e alimentação coletivas, dificuldade de comunicação, falta de contato com a comunidade do entorno, ausência de documentos e medo de deportação resulta em enclausuramento. Os trabalhadores estrangeiros eram submetidos a um cenário de dependência total – não só da própria vida, mas também dos familiares – com relação aos donos das oficinas.
Crescimento pela terceirização
De acordo com números apurados pela SRTE-SP, a Collins contratou, entre janeiro de 2009 e junho de 2010, 78 oficinas irregulares, que produziram mais de 1,8 milhão de peças sem que qualquer empregado tivesse seu contrato de trabalho formalizado. A empresa teria sonegado mais de R$ 137,2 milhões em Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e aproximadamente R$ 400 mil do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
O crescimento exponencial do número de lojas da rede Collins coincide com a intensificação dos processos de diversificação de oficinas fornecedoras, a partir de 2004 (como revela o gráfico acima). Estas unidades subcontratadas consistem normalmente em estabelecimentos precários e que se utilizam de mão-de-obra informal, por vezes em condições de escravidão. A SRTE-SP estima que 800 trabalhadores tenham sido prejudicados pelas terceirizações da empresa Collins. O cálculo toma como referência o histórico de fiscalizações em oficinas de costura similares à de David Ovídio Aranda Mamani.
As investigações constataram que a Collins pagava valores irrisórios para as oficinas subcontratadas que costuram suas roupas. Os donos da oficina recebiam, em média, R$ 1 por peça. E apenas uma parcela disso acabava remunerando costureiras e costureiros. Para a fiscalização, isso perpetuava a condição de degradação dos ambientes de trabalho.
A SRTE-SP também fiscalizou a sede da Modas Safira Ltda., uma das seis empresas do Grupo Collins. Dos 40 trabalhadores da unidade, 13 deles (32,5%) estavam sem carteira assinada. Tais empregados tiveram seu registro e recolhimento de FGTS regularizados. Foram identificadas , no total, 78 pessoas sem o devido registro, que atuavam no gerenciamento das oficinas fornecedoras da Collins.
Atualmente, a Collins é uma das maiores redes varejistas de moda feminina do país. Suas roupas podem ser encontradas em mais de 500 lojas multimarcas espalhadas pelo Brasil, conforme informações do site da empresa. Segundo a mesma fonte, a rede contabiliza 87 estabelecimentos próprios, situados em pontos comerciais nobres e shopping centers da capital paulista, Grande São Paulo, interior paulista, Brasília (DF) e Manaus (AM).
“Apesar da grande quantidade de estabelecimentos, salta aos olhos o fato de que algumas firmas do Grupo Collins ainda se enquadram no regime de Empresa de Pequeno Porte (EPP) beneficiando-se de um regime jurídico e contábil não compatível com seu vulto econômico”, destaca relatório da SRTE-SP.
Na primeira fase da auditoria, ficou comprovada a absoluta informalidade da mão-de-obra responsável pela confecção das roupas comercializadas pelo complexo empresarial Modas Collins. Posteriormente, na segunda etapa, foi constatada a degradação desses ambientes de trabalho terceirizados. O esquema servia, na análise do órgão trabalhista, para “mascarar a subordinação reticular” de toda a cadeia produtiva à Collins.
Constatou-se que seis diferentes “empresas”, todas dirigidas pelo coreano Won Kyu Lee, formavam o complexo empresarial “Modas Collins”. Todos os talões de notas fiscais apreendidos durante a fiscalização trazem a logomarca “Moda Collins”, independente do nome, do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) ou da razão social utilizados. Cada tentáculo do grupo subcontratava um determinado número de estabelecimentos.
“Percebe-se que a pulverização do grupo econômico Collins em pessoas jurídicas artificiais, de pequeno porte, visa a dificultar o controle e a fiscalização dos órgãos públicos. A dificuldade de rastreamento contábil da produção facilita, assim, o mascaramento da teia de subcontratações sucessivas que leva à precarização das relações de trabalho”, analisa o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Na concepção da SRTE-SP, a Collins é inteiramente responsável pela situação encontrada. “O emaranhado em rede das empresas envolvidas na cadeia produtiva é de inteiro conhecimento e aprovação da empresa autuada, que compõe, na verdade, grupo empresarial que comanda e exerce seu poder de direção e ingerência de diversas formas, sempre no sentido de adequar a produção de peças de vestuário à sua demanda, ao seu preço e à sua clientela. Investe em uma marca forte, de grande valor comercial, indicando um fundo de comércio baseado na marca e no estilo que vende. Impõe esse estilo a seus fornecedores, que são, na verdade, meros intermediadores de mão-de-obra barata e precarizada”, explica o relatório.
De acordo com Luís Alexandre Faria, auditor fiscal da SRTE-SP que coordenou a fiscalização, a empresa não tomou nenhuma providência mesmo depois de autuada. “(A Collins) Não nos procurou para qualquer tratativa de regularização. Os relatórios e autuações já foram encaminhados à Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), divisão do MTE em Brasília (DF), para acompanhamento dos autos de infração, e aos demais órgãos responsáveis”.
A operação foi coordenada pela SRTE-SP e contou com a participação de representantes da DPU-SP, do Ministério Público Federal (MPF), da Justiça do Trabalho e da Secretaria de Estado da Justiça e Defesa da Cidadania – Núcleo de Enfrentamento e Prevenção ao Tráfico de Pessoas de São Paulo. A fiscalização se deu no âmbito do Pacto Contra a Precarização, e pelo Emprego e Trabalho Decentes – Setor das Confecções.
Diante do ocorrido, a Collins se limitou a informar, por meio de sua assessoria de imprensa, “que respeita a legislação trabalhista brasileira e que mantém a posição de impedir qualquer tipo de irregularidade”.
A Repórter Brasil entrou em contato com a Associação Brasileira dos Coreanos (ABC), que é signatária do Pacto Contra a Precarização e Pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo – Setor das Confecções, para registrar a posição da entidade acerca do episódio envolvendo a Collins. Porém, não houve retorno até o fechamento desta reportagem.
Ao assinar o compromisso, a ABC se comprometeu a divulgar o objetivo do pacto nos meios de comunicação da comunidade coreana em São Paulo (SP), e a orientar as indústrias de confecção de roupas da comunidade coreana nos bairros do Bom Retiro e do Brás para somente se relacionar com as oficinas de costura legalmente constituídas, por meio de notas fiscais.
* A jornalista da Repórter Brasil acompanhou a fiscalização da SRTE-SP como parte dos compromissos assumidos no Pacto Contra a Precarização e pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo – Cadeia Produtiva das Confecções
** Nome fictício.
*** Publicado originalmente pela Repórter Brasil.