“Carlos Drummond de Andrade enxergava a transcendência na imanência”, diz o teólogo Alex Villas Boas.
Para o ex-aluno dos jesuítas Carlos Drummond de Andrade, a transcendência só poderia existir na imanência, “como salto qualitativo do existir diante da ‘pedra’ da impossibilidade. Aqui talvez seja o ponto mais próximo da poesia com a mística, de encontrar um mistério em todas as coisas e que oferece sentido a todas elas”.
A declaração é do teólogo Alex Villas Boas, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, ao refletir acerca de sua obra Teologia e Poesia – A Busca de Sentido em Meio às Paixões em Carlos Drummond de Andrade como Possibilidade de um Pensamento Poético Teológico (Sorocaba: Crearte Editora, 2011).
Expulso do Colégio Anchieta, em Nova Friburgo, Rio de Janeiro, por “insubordinação mental”, uma vez que escrevia suas poesias nas aulas de ensino religioso, Drummond jamais escondeu a decepção pela injustiça a que fora submetido. Em 1941, afirma em uma entrevista: “Perdi a fé. Perdi tempo. Sobretudo, perdi a confiança na justiça dos que me julgavam”.
Conforme Villas Boas, a partir da obra drummondiana, pode-se dizer que “poesia é uma expressão externa do processo interno da reinvenção de si mesmo. Ressignificar Deus é próprio da poesia humana. Ressignificar a vida é próprio da poesia de Deus. Ressignificar o mundo é próprio do encontro dessas duas poéticas”. Contudo, alerta: “Drummond não quis recriar a imagem de Deus; preferiu morrer como agnóstico dizendo que isso era tarefa para os teólogos, mas antecipa o trabalho destes em muito com sua poesia mística do cotidiano em nos poetar quem Deus não é”. E que não se busque na claridade a resposta enigmática da vida. As pedras, pondera Villas Boas, são inerentes à vida, presentes “em estruturas rígidas da sociedade, camufladas de tal modo que o acento da culpa não é dado pelo fato de a pedra estar no caminho, mas recai exclusivamente sobre o indivíduo a responsabilidade de ter topado com ela”.
Graduado em teologia pelo Instituto Superior de Teologia João Paulo II e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Alex Villas Boas é mestre em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção com a dissertação O Sentido da Vida na Trajetória Poética de Carlos Drummond de Andrade – Reflexão Teológica a Partir da Antropologia Contida na Obra Drummondiana. Atualmente cursa doutorado em Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e leciona em algumas instituições, como o Instituto de Teologia João Paulo II, o Centro Universitário Assunção (Unifai-Brasil) e a Escola Dominicana de Teologia (EDT).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que relações percebe entre teologia e a obra poética de Drummond?
Alex Villas Boas – Drummond fez uma experiência de Deus ainda muito novo, e passou por uma amarga expulsão do Colégio Anchieta. O que mais fascinava Drummond no Colégio eram os jesuítas, pela sua aura de intelectualidade em sua busca de conhecimento. O jovem Drummond, ou Carlito, como era chamado, mergulhou no universo jesuíta, aceitando plenamente os valores e as normas do colégio e da instituição, bem como do catolicismo, comungando e confessando quase diariamente. Dedica-se exemplarmente à sua vida intelectual, chegando a ganhar, em 1918, várias medalhas de “general” por destacamento nos estudos.
Entretanto, por um desentendimento com um professor de gramática, é expulso do Colégio por “insubordinação mental”, porque escrevia poesias nas aulas de ensino religioso, que era quando mais se sentia inspirado. Tal expulsão o abalou profundamente. Perto dos 17 anos, Drummond declara: “Perdi a fé. Perdi tempo. Sobretudo, perdi a confiança na justiça dos que me julgavam” (entrevista em 1941 à Revista Academia). O jovem Drummond viveu uma época difícil em que o cristianismo era marcado por grave acento racionalista, que nem mesmo a Companhia de Jesus conseguiu escapar. Neste momento, o jesuíta é muito mais reconhecido por “homem de estudo”, como disse o padre Joseph de Guibert em sua La Spiritualité de la Compagnie de Jésus (1953), do que como um místico. Consequentemente, Perinde ac Cadaver (obedece como cadáver) de Santo Inácio, que deve ser visto como uma docilidade à ação do espírito, foi visto como intolerância e autoritarismo. Drummond escreve isso em um poema chamado Recusa, no livro Boitempo, quando ruminava os acontecimentos do passado, já em fase idosa. E ainda lembrava dessa expressão e de tudo que o marcou.
Um possível jesuíta
Em uma entrevista, próximo de sua morte, chegou a dizer que, se não tivesse sido expulso do Colégio, teria sido jesuíta (Moraes Neto, 2007). Se seria ou não, é outra coisa, mas esta afirmação ao final da vida não me parece gratuita, e pode revelar muito o drama vivido entre um desejo e sua impossibilidade, por uma injustiça. Tudo isso marca profundamente a visão de Drummond sobre Deus. A poesia irônica de Drummond tem em sua raiz uma alteração de percurso da “devoção à decepção”, de sua poesia devota, como escreveu em Retiro Espiritual: “a santidade é meu destino”. Seus primeiros escritos são no Colégio Anchieta e falam sobre Deus, fé, esperança e tudo isso se encaminha para uma experiência de derrota, uma derrota, porém, não marcada pela sua incapacidade pessoal – pois era jovem exemplar no colégio jesuíta – mas sim pela falta da liberdade que lhe foi dada e pelo sentimento de justiça que lhe foi negada. No momento em que isso acontece na vida de Drummond, Deus é visto como a razão de seu viver, na imitação da vida dos santos e da vida de Cristo (lia a Imitação de Cristo diariamente). Porém, para o poeta, desde sua expulsão, a autonomia da vontade humana e a soberania da vontade de Deus entram num erosivo processo de ruptura quando os que agiram em nome da vontade de Deus também carregaram o signo da injustiça em sua vida, exigindo do poeta a ressignificação de Deus e da razão de seu viver. Aqui nasce a percepção poética de Drummond, em que coloca na ironia toda a contradição entre o discurso e o vívido. A mesma classificação que alguns deram a Jorge Luiz Borges, eu daria a Drummond, de um teólogo ateu. A poesia drummondiana experimenta o que diz, como a Teologia jamais deveria se esquecer, pois sempre será legítima como ato segundo de uma relação teologal primeira.
IHU On-Line – Em que sentido os poemas de Carlos Drummond de Andrade podem ser compreendidos como um pensamento poético teológico?
Alex Villas Boas – Talvez não seja exatamente nas poesias quanto no pensamento poético de Drummond. Há na metapoesia não religiosa de Drummond uma mística poética de uma teologia ateia, de um dizer Deus pelas avessas, que se recusa a enxergar a causa de todas as coisas em uma “ordem” estabelecida por um “deus” em um mundo tão fora de ordem. Mas que ainda assim procura enxergar a beleza de cada coisa e de cada pessoa, e até mesmo enxergar em tudo isso uma centelha de mistério, sem se sentir na obrigação de nomeá-Lo, mas apenas poetizar. Carlos Drummond de Andrade, esse grande teólogo ateu de um Deus metafísico que tudo vê e nada sente e que não anuncia a Sua morte mas exorciza seus fantasmas, traz aquelas imagens de Deus que se apresentam na vida das pessoas como uma grande pedra em seus caminhos. A poesia de Drummond ajuda a se desprender de imagens inadequadas de Deus.
“Crer em Deus”, em Drummond, significava ser conivente com a condenação do mundo, com a hipocrisia estabelecida nas relações, com a usura, a subserviência, com um ufanismo cego pelo dogmatismo e pela autoridade e, acima de tudo, com a insensibilidade da dor humana. Qualidades essas que não ajudavam o mundo a ser melhor e que eram alimentadas a partir de um imaginário religioso. Drummond não quis recriar a imagem de Deus; preferiu morrer como agnóstico dizendo que isso era tarefa para os teólogos, mas antecipa o trabalho destes em muito com sua poesia mística do cotidiano em nos poetar quem Deus não é.
Educação para o silêncio
Essa poesia drummondiana vem ao encontro da percepção de Karl Rahner, que vê a poesia como preparação para a escuta da palavra. Se para este teólogo inaciano a pregação da palavra cumpre sua tarefa ao sinalizar “exteriormente” o que o espírito opera interiormente, esta palavra para Rahner não é qualquer palavra, mas uma palavra poética. Porque para “para poder ouvir a palavra do Evangelho”, é necessário:
1) que o ser humano tenha ouvidos abertos para “ouvir o inominável” e a poesia educa para o silêncio contemplativo da palavra, para aquilo que ela quer dizer além do que já disse;
2) de capacidade para ouvir as palavras que toquem ao “centro” do ser humano, portanto precisa aprender a ouvir as “protopalavras” ou “palavras primordiais (Urworte – que escapam a toda definição) do coração” e é próprio da poesia ser a palavra “certeira” porque brota de uma “veneração do coração”;
3) ouvir a palavra que “une”, que “reconcilia” e “liberta o individual de sua ilhada solidão”, e é a palavra poética, enquanto palavra autêntica que penetra o interior do humano, fala humanamente, de modo familiar a ele, fala conhecendo sua dor e seu íntimo e, por isso, está unida ao que ouve; e
4) descobrir o mistério inefável “em meio a cada palavra”, de perceber a palavra que se fez carne na realidade humana. Saber ouvir essa palavra na realidade humana é estritamente “graça da fé”, mas é a graciosidade da poesia que pode ajudar a ler o profundo do humano, como “finitude de um mistério infinito”, que é seu interior. A sensibilidade para a palavra poética é um “pressuposto para ouvir a palavra de Deus”, a “poesia fundamental da existência eterna”, pois a “palavra divina leva já em si, o ser mais íntimo da palavra poética”.
IHU On-Line – Qual é o sentido da vida na obra de Drummond?
Alex Villas Boas – É consensual que Drummond tem ao menos três grandes fases em sua trajetória poética. Uma poesia irônica, em que a vida não faz muito sentido, e na ironia parece o poeta tentar nos mostrar que é possível se acomodar com uma vida sem sentido. Depois vem a fase de sua poesia social, em que o poeta se une ao sentimento do mundo que se pode falar de uma apreensão do sentido, como um exercício de consciência que o poeta toma das coisas, dos demais e de si mesmo, num indisfarçável sentimento de indignação, que brota do choro das crianças e do clamor silenciado dos corpos mortos, numa época em que “a vida é sem importância”, para um compromisso com essa vida que todos fingem não ver.
Mas o poeta itabirano também tem suas decepções profundas com o cenário político de sua época, ao que passa, então, para sua poesia metafísica. Esta é o resultado de uma redescoberta “antieuclidiana”, que foge do encadeamento lógico da sociedade para uma outra lógica que emerge da consciência da impossibilidade e da fragilidade. Pois, se a “pedra” da impossibilidade é um enigma indecifrável, o “humano milagre do amor” é que permite a fragilidade reinventar a existência o “amor de todos a todos/ofertando o sentimento/de que o mundo tem sentido”, e que a própria busca é o sentido da vida, a “humana condição no eterno jogo/sem sentido maior que o de jogar”. O amor é “que à vida imprime cor, graça e sentido”. Sendo o amor que confere sentido à vida, é ele que permite Nascer de Novo:
Eis que um segundo nascimento,
não adivinhado, sem anúncio,
resgata o sofrimento do primeiro,
e o tempo se redora.
Amor, este o seu nome.
Amor, a descoberta
de sentido no absurdo de existir.
IHU On-Line – Como Deus se manifesta na obra de Drummond?
Alex Villas Boas – O problema de Drummond é com a teodiceia, com a ideia de que a vontade de Deus rege um mundo perfeito que não se verifica, sobretudo em um período político delicado como o que se seguiu após as duas guerras mundiais e a Guerra Fria. Se “Deus” pode se manifestar, será afirmando o absurdo da vida, e que, apesar desta condição, há um mistério que permite a vida ainda encontrar sentido. Drummond não nomeia Deus, também não mata; apenas acolhe essa misteriosa capacidade de encontrar um sentido na vida e, de modo especial, na experiência de amar. A maior experiência de amor do poeta foi com sua filha.
IHU On-Line – Que relações com o sagrado podem ser observadas nas obras do “poeta das sete faces”?
Alex Villas Boas – Sete Faces diz respeito à antropologia drummondiana, o ser gauche. O poema de Sete Faces, por exemplo, contém sete estrofes e revela a identidade múltipla de um ser fragmentado, em que cada estrofe revela um aspecto do gauche: o ser de desejo, o que se envolve com a massa, o homem sério e de respeito, o da revolta com Deus, aquele que se acha superior ao mundo dos comuns num momento, mas que logo volta a pisar no mesmo solo. Sete pode ser a ironia da criação, pois tem a ideia de perfeição tirada das obras do Criador, mas perfeição que não se verifica. Suas faces são os fragmentos que se chocam com alguma pedra de impossibilidade. A ironia é portadora da contradição que afeta o poeta, e ele pode usar de ironia porque não mais acredita na veracidade de como as coisas lhe foram passadas: não acredita mais em sonhos, na sociedade, na sua pátria ou no amor. A ironia traz à luz o que a hipocrisia dessa “vida besta” tenta camuflar, enganando uns aos outros.
A “pedra” drummondiana é sentimento de impossibilidade e fragilidade que fragmenta o ser em “cacos” de ser ao se chocar com ela, vive fragmentado, ama fragmentado, sofre cada fragmento de seu ser. Essa “pedra” é inerente à vida, sim, mas também está presente em estruturas rígidas da sociedade, camufladas de tal modo que o acento da culpa não é dado pelo fato de a pedra estar no caminho, mas recai exclusivamente sobre o indivíduo a responsabilidade de ter topado com ela. A contradição do discurso sobre Deus revela, na verdade:
1) Deus surdo ao seu clamor: “Meu Deus, porque me abandonaste”;
2) e insensível à fraqueza humana (“se sabias que eu não era Deus/se sabias que eu era fraco”);
3) Deus é distante, fica no alto, no “alto do morro”, para onde se dirige a procissão de romeiros que sobe a ladeira.
Na visão gauche, há uma estranha relação entre o indivíduo e Deus: este tem a predominância da vontade sobre todas as coisas, mas ao mesmo tempo parece não conseguir que ela se realize resultando numa “tristeza de Deus”, quando Ele se pergunta: Por que fiz o mundo?, e responde a si: “Não sei”.
Na antropologia drummondiana, o gauche, aquela característica do sujeito moderno de ser “torto”, desajustado aos princípios de seu tempo, que anda na contramão da história, na sua esquerda, tem sede de Deus e O procura, mas não entende por que Deus não se deixa alcançar ou não o auxilia em seu desejo de ir para o céu e O abandona na contradição humana de seu drama e sua fraqueza, e sua poesia parece querer mostrar que há qualquer coisa muito torta em tudo isso, o que faz o indivíduo reinventar a própria vida.
IHU On-Line – Como aparece a metafísica na dialética “eu/mundo” da poesia de Drummond?
Alex Villas Boas – Essa dialética é proposta pelo professor Affonso Romano Sant’anna (Drummond: Gauche no Tempo, 1972), utilizando uma linguagem heideggeriana, apresenta a poesia de Drummond como “projeto poético-pensante”, em três momentos:
1) Eu maior que o mundo (poesia irônica);
2) Eu menor que o mundo (poesia social); e,
3) Eu igual ao mundo (poesia metafísica), posição básica da obra que apresenta um vasto sistema de oposições (claro/escuro; província/metrópole; essência/aparência; vida/morte…) como modelo fundamental.
Então, na primeira fase, o poeta fica no seu canto, estranhando esse mundo maluco. Num segundo momento, na sua poesia social, quando o sofrimento do mundo o desloca de seu canto, ele percebe a grande impossibilidade da mudança apenas pela boa vontade dos ideais e se recolhe ao perceber a insignificância do indivíduo. Na relação “eu igual ao mundo” da poesia metafísica, há uma verdadeira busca de sabedoria do poeta, mais serena talvez, relacionando o universal dentro do indivíduo. Assim, identifica no indivíduo os ideais de seu tempo, ainda que desfigurados entre os fatos rotineiros, perquirindo metafisicamente o presente numa memória da memória, como elemento conformador de sua consciência, ao perguntar pelos outros do passado, mas indagando de si mesmo, num reprocessamento da existência para reincorporar um tempo morto num tempo vivo.
Num balanço que faz dos anos, não se sente habilitado a “julgar a vida” nem a si mesmo. De toda a caminhada trilhada pelo poeta na vida, a única coisa de que tem certeza que carrega consigo é que: “De tudo quanto foi meu passo caprichoso/na vida, restará, pois o resto se esfuma/uma pedra que havia no meio do caminho”. Um “não” insensível que se manifesta nas coisas, dando a impressão de um “sem sentido”.
Viagem pelo tempo
Por isso mesmo há de se revisitar o passado para entender melhor seu futuro e, na sua condição de um desafio que resiste, não é com claridade que se obtém a resposta enigmática da vida. Tampouco há de se render às mais espessas trevas, mas é um olhar “opaco” que o poeta lança para as coisas, um olhar de “desencantamento” do mundo, que detém na dificuldade, no escurecimento e no obstáculo, entrelaçando a melancolia, o fechamento e a recusa simples, como forma de refutação frente aos entraves do mundo. Há um recolhimento da utopia para um volta à memória, uma procura do presente no passado, a fim de saber o que poderá se projetar também no futuro, não se iludindo com o que não será, e, assim, longe de um ilusório “vão desenho” de si mesmo, pode-se amar o futuro.
Para o poeta, a viagem pelo tempo empreende uma pergunta pelo que permanece no tempo. O poeta se põe em trânsito, mas não quer se apressar para não chegar despreparado, e se põe a ruminar o tempo. Ao resistir o tempo da vida que se esvai, obriga-se a conviver com o elemento mortal, implícito na própria vida. Não é ignorar a morte que permite à vida ser melhor vivida, mas também a admissão da morte é parte da vida. É importante “saber ser” e “não ser”, pois há momentos em que o “mundo não tem sentido” e momentos em que “tudo tem sentido”. A falta de sentido é devido à falta do amor que torna pesada a mais ínfima pena. É aí, portanto, que se deve empenhar a luta da paixão pela vida contra a apatia de não amar, a luta de Eros contra Tanathos.
IHU On-Line – Que relação pode ser estabelecida entre transcendência e imanência na obra desse poeta?
Alex Villas Boas – Para o poeta, só há transcendência na imanência como salto qualitativo do existir diante da “pedra” da impossibilidade. Aqui talvez seja o ponto mais próximo da poesia com a mística, de encontrar um Mistério em todas as coisas e que oferece sentido a todas elas. A teologia patrística entendia que a encarnação do Verbo era uma comunicatio idiomarum, uma comunicação do modo de ser de Deus na pessoa de Jesus, de modo que Nele se podia enxergar Deus. A mística da poesia capta o “idioma de Deus” como inspirador de uma experiência de sentido. A mística re-vela Deus e o poeta esconde Deus para ser encontrado. A pesquisa em teologia e em literatura permite recuperar duas grandes questões fundantes do cristianismo: a mistagogia como modo de conhecer a Deus pessoalmente e a consciência coletiva, de uma responsabilidade pelo mundo como “irmão de todos”.
Poesia é uma expressão externa do processo interno da reinvenção de si mesmo. Ressignificar Deus é próprio da poesia humana. Ressignificar a vida é próprio da poesia de Deus. Ressignificar o mundo é próprio do encontro dessas duas poéticas. Poesia é capacidade de escuta dos apelos do coração e da realidade. Teologia é escuta da poesia de Deus que sabe escutar o coração humano. E a Teologia pode reconciliar-se com a Poesia, quando o sonho de ambas é o de uma nova humanidade. A poética ajuda a mística a permanecer encarnada no tempo presente e a reinventá-lo. A mística ajuda a poesia a permanecer escutando o Mistério, quando o sentido se esvai. É necessário saber voar, mas todo voo que não aterrisa não nos parece ser uma boa viagem.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.