Convido vocês a me acompanhar na retomada do tema da Escola da Ponte. A razão? É que essa escola tem sido tão falada que, considerando-se a importância pedagógica e política da educação, pensei que seria apropriado dedicar-me um pouco mais àquilo que ela tem de revolucionário e inovador, porque é possível que tenhamos muito a aprender…
Era o ano 2000. Comecei a receber e-mails de Portugal. Quem os enviava era um professor que eu não conhecia, Ademar Ferreira dos Santos. É que ele conhecia uma brasileira que lhe emprestara um livrinho meu. Livrinho mesmo, pequenas estórias sobre crianças, professores e escolas: “Estórias de Quem Gosta de Ensinar”. Ele gostou do dito livrinho, o que quer dizer que tínhamos pensamentos parecidos. De longe, ficamos amigos. Convidou-me a ir a Portugal. Fui e fiz algumas falas para professores e estudantes.
Numa manhã, ele foi buscar-me na hospedaria em que me encontrava. “Vou levar-te a conhecer uma escola diferente…”, disse.
“Diferente como?”, perguntei, curioso. Ele me respondeu: “Não há formas de o dizer. É preciso ver…”.
Chegamos. De fora, um prédio comum com um jardim na frente. O diretor, José Pacheco, se aproximou, o Ademar nos deixou e ali ficamos, os dois, por alguns minutos, trocando as banalidades protocolares. Acostumado aos jeitos comuns aos diretores, imaginei que o professor José Pacheco iria conduzir-me pelas dependências da escola e explicar-me a sua filosofia de educação. Mas não foi isso que aconteceu. Passava por ali uma menina, deveria ter uns nove anos… O professor se dirigiu a ela com um pedido: “Tu podes mostrar e explicar a nossa escola para o nosso visitante?”.
Sem demonstrar nenhuma surpresa (o que significava que pedidos como esse deveriam ser corriqueiros naquela escola), ela simplesmente disse: “Pois, pois…”. O professor me deixou sozinho com a menina e se foi para cuidar de outras coisas.
Espantei-me. Uma cena como essa nunca passara pelo meu imaginário: não conheço nenhum diretor que tivesse dado a uma menina de nove anos a tarefa de mostrar e explicar a sua escola a um visitante.
O espanto desarticula o pensamento. Desarticulado pelo espanto, o pensamento pergunta, em busca de compreensão. Pensei e me perguntei: “Que tipo de relação é essa entre diretor e aluno? É coisa nova. Desconheço”.
Mas uma coisa era clara: era relação de igualdade e confiança. O diretor confiava no que a menina sabia e entendia, confiava em que ela seria capaz de articular seus pensamentos e palavras para responder às perguntas que eu, estranho, iria fazer.
A menina deu meia volta e se encaminhou na direção da porta da escola. Lá chegando, parou, virou-se para mim e disse, com tranquilidade e confiança: “Para o senhor entender a nossa escola, terá que se esquecer de tudo o que sabe sobre escolas”.
Outro espanto. Ela estava me advertindo sobre as condições dos meus olhos e pensamento para entender o que iria ver: era preciso esquecer-me do que eu sabia para entender aquilo que eu nunca havia visto. Onde foi que ela aprendera essa “pedagogia do esquecimento”? Alguém a ensinara?
Ela continuou: “Não temos professores dando aulas…”.
(Mas as aulas não são a base de toda atividade escolar?)
“Não temos campainhas separando os tempos da aprendizagem, não temos provas, não temos notas…” De novo, o espanto me obrigou a perguntar: “E como é que vocês aprendem?”.
Ela me explicou com segurança.
Depois eu conto…
* Rubem Alves é educador, escritor, psicanalista e professor emérito da Unicamp – [email protected].