Ecologia, espiritualidade, ética: relacionando os 3 E’s com a ética nos negócios

Roberto Patrus-Pena.

Este ensaio é fruto das minhas inquietações como professor de ética, psicoterapeuta e cidadão preocupado com a preservação do planeta. Procurei pensar sobre a importância de saber-se provisório nesse mundo, fonte de reflexão sobre o mistério e da espiritualidade. A partir dessa ideia, procuro relacionar ecologia, espiritualidade e ética (os 3 E’s), com o propósito de oferecer ao leitor uma oportunidade de refletir sobre si mesmo e sobre a qualidade da sua militância em prol de um mundo melhor. Finalizo o artigo associando a temática dos 3 E’s com a ética nos negócios, a partir da premissa de que o trabalho é um lócus privilegiado da nossa atuação para a construção de uma sociedade melhor. Devemos lutar por justiça e sustentabilidade. Mas podemos fazê-lo com amor. E felizes.

O princípio ecológico

Nós somos hóspedes na vida. Antes de nascer, habitamos um órgão muscular feminino, que acolheu a cada um como ovo fecundado. Expulsos do meio líquido do útero, fazemos da primeira inspiração do ar a origem de toda angústia que vamos sentir toda vez que o choque da novidade abalar o equilíbrio de nossa energia vital. Somos hóspedes de um útero antes mesmo de nascer.

Recebido com hospitalidade, alegria e deslumbramento, o novo ser precisa de um lugar para morar. E o rebento vai para uma casa que não é sua, mas dos pais ou daqueles que se dispuseram a criá-lo. Sua chegada é celebrada com visitas de amigos e familiares. Embora talvez nem saiba, o filho é hóspede na casa dos pais. Dorme, come e vive em uma casa que não lhe pertence. Desconfio que quanto maior a noção que uma pessoa tem de que a casa onde está não é sua, maior a chance de que ela se comporte com mais educação. Quem se sabe visita na casa alheia lida com os objetos e com o espaço do outro com maior cerimônia. Tende a preservar espaços íntimos, armários, gavetas, a evitar a intimidade, enfim. Somos visita na casa dos nossos pais. Mesmo morando na casa deles.

Pode ser que um dia o filho (ou a filha) deixe a casa paterna. Terá então a sua própria casa, não importa se “casa própria” ou alugada. Ainda assim, o ser humano continua sendo hóspede na vida. O planeta é a sua casa maior e não lhe pertence. A passagem de cada um de nós pela Terra um dia terá um fim. E ela continuará recebendo outros hóspedes, quem sabe nossos filhos, netos, bisnetos… Quanto maior a consciência da pessoa de que a Terra é a grande casa que o hospeda provisoriamente, maior a probabilidade que ela atue com educação ecológica. Também somos visita no planeta. A vida circula e permanece. Nós passamos.

Da compreensão de que o ser humano se acomoda provisoriamente no útero, na casa dos pais e no planeta, podemos deduzir um preceito bíblico: honrar pai e mãe. Esse mandamento significa reverenciar a origem próxima, os pais – responsáveis primeiros pelo milagre da concepção – e a origem primeira, fonte do mistério maior que é a Criação. Quem não respeita pai e mãe está adormecido em relação ao mistério do mundo. Saber-se criatura permite ao ser humano ter humildade para reconhecer que os fenômenos da vida ultrapassam a capacidade humana de tomar consciência deles. Esta constatação possibilita o respeito a posições divergentes e facilita o diálogo entre religiosos, filósofos e cientistas de posições divergentes.

Desse preceito, deduzimos o princípio ecológico de respeito ao planeta, como casa da qual somos visita em tempo provisório. Aliás, a palavra eco, do grego oîkos, significa casa, habitação. Cuidar das florestas, rios, mares e da atmosfera terrestre é cuidar de nossa casa. Quem é incapaz de ver que a vida continua mesmo depois da própria morte, ilusão própria de um individualismo cego, é insensível à premência de preservar e manter as condições de vida da Terra.

Em síntese, a consciência de que somos hóspedes na vida permite a reflexão sobre o mistério do mundo e, ao mesmo tempo, a compreensão da ecologia como cuidado com a casa em que vivemos. Somos provisórios. Estamos de passagem.

A espiritualidade como princípio

Hóspede no planeta, o ser humano é também hóspede do próprio corpo. À medida que envelhece, tem a chance de ver-se cada vez mais lúcido em um corpo cada vez menor para a grandeza da inspiração que um dia foi chamada de alma. Não somos o nosso corpo. Essa ilusão, comum tanto a quem se sente belo quanto àquele que não gosta do seu corpo, é fonte de sofrimento, atual ou futuro. Ao contrário dos animais, que são o corpo, o ser humano tem um corpo.

A partir do momento em que o ser humano demonstra capacidade de abstração e consolida as mudanças fisiológicas que permitem a reprodução, ele já é capaz de compreender que o corpo é a casa do seu espírito, ou, para usar uma linguagem laica, a casa da sua consciência, do seu pensamento sobre si mesmo, de sua reflexão. A velhice, entretanto, é a última oportunidade para que ele acabe com a ilusão de que é o seu corpo. A diminuição natural de algumas funções do seu corpo e a necessária adaptação às limitações próprias da idade permitem ao adulto velho pensar que seu corpo é uma casa frágil para um espírito cada vez mais livre. Se abençoado com a virtude da fé, pode valer-se dela para imaginar que também é hóspede do seu corpo. A partir daí, abre-se a possibilidade de viver com espiritualidade e perceber em cada gesto, palavra ou conduta a celebração do mistério da vida.

A compreensão de que a vida é mistério é o fio de Ariadne para pensar a relação entre ecologia, espiritualidade e ética. Não é raro ver pessoas deslumbradas com o nascimento de uma criança na família. A gravidez, o parto, o primeiro colo de um ser tão belo quanto indefeso são experiências que se apresentam ao ser humano como um mistério maravilhoso. Ocorre, porém, que cada um de nós é o mesmo mistério de um recém-nascido. Apenas crescemos. O arrebatamento diante da vida não acontece somente diante de um bebê que acaba de nascer. Ele se apresenta a qualquer momento. Sempre. Mas nem todas as pessoas estão atentas para o mistério da vida.

Não deveríamos precisar de eventos extraordinários para lembrar que estamos vivos. Curiosamente, damo-nos conta do esplendor da vida e do espetáculo de existir quando estamos diante da morte ou diante de algo que nos pareça um milagre. O milagre (do latim miraculum, substantivo que significa prodígio ou fato extraordinário, e mirari, verbo que exprime admiração, espanto) é a manifestação de um fenômeno fabuloso diante do qual nos sentimos maravilhados. Existe fenômeno mais interessante do que a vida? Não é absolutamente estranho estarmos respirando (involuntariamente) em um planeta que se move no universo em meio a uma infinidade de astros?

Certa vez um aluno me disse que ficara maravilhado ao visitar a horta de um amigo. Disse-me que o sujeito conversava com os pés de tomate e com as alfaces, construía pirâmides para enviar energia para as plantas, fazia a horta “ouvir” música clássica e mais algumas estratégias parecidas. Os tomates e as alfaces que ele colhera eram tão maiores que o tamanho normal que ele disse tratar-se de um milagre da “energia cósmica”. Como seu professor de Filosofia, disse-lhe que o milagre não era acelerar o crescimento do tomate nem fazê-lo crescer mais do que o normal. Milagre era existir tomate! Por que existe tomate? Por que uma semente se transforma em uma árvore que dá frutos com sementes? Em suma, por que existe vida?

Vida é mistério. Mistério é não-saber. Diante do não-saber, o ser humano sente angústia. Fica incomodado por não ter respostas para suas perguntas. Diante do abismo do não saber, o ser humano é convidado a construir os fundamentos. Assim, o ser humano inventa respostas. O vazio de respostas para o mistério da vida é condição de possibilidade para a liberdade humana. Se não houvesse o vazio, ninguém teria a liberdade de acreditar no que acredita. Seríamos obrigados a aceitar uma verdade pré-estabelecida, que recusa a possibilidade de outra versão. A isso chamamos fundamentalismo. O fundamentalismo recusa o mistério (e a angústia decorrente) porque considera que a resposta para a origem da vida está dada de forma satisfatória. Para o fundamentalista, quem discordar dele está errado. Por isso, o fundamentalismo está de mãos dadas com a intolerância religiosa, com o moralismo e com a rigidez ética. Ele impede a compreensão da espiritualidade como a consciência do mistério.

As respostas para a origem da vida são construídas a partir do reconhecimento do mistério do mundo. Podemos entender, assim, a máxima socrática como ponto de partida da sabedoria filosófica. Essa postura de humildade permite o diálogo com quem pensa diferente sobre algo de que ninguém pode ter certeza. E abre a perspectiva para que cada pessoa evite identificar-se com o seu pensamento e a sua crença. A fixação no conhecimento ou na moral decorre do esquecimento de que tudo o que pensamos é uma mera construção humana para lidar com o sentimento de insegurança diante do abismo. Mesmo a ciência é um esforço de compreensão da realidade que não soluciona o mistério, ainda que amparado em métodos de maior rigor. Pobre do cientista que deixou de duvidar do conhecimento. Corre o risco de transformar-se em um fundamentalista acadêmico. O desamparo existencial é fonte de fé, sabedoria e ciência e, como tal, deve manter-se aberto ao mistério, a fim de não aprisioná-lo em formulações científicas ou apologéticas fechadas à contínua descoberta da verdade.

A consciência do mistério e a liberdade humana de pensá-lo para lidar com os perigos da vida permitem ao ser humano pensar a escolha de suas condutas com espiritualidade, condição para atuar eticamente com elevação. Com tal dimensão de espiritualidade, o ser humano é capaz de perceber que seus papéis sociais, sua profissão, seus bens não são a sua essência. Sabe do risco de identificar-se com sua função como pai, mãe, professor, gestor, assistente social ou qualquer outro papel. E abre-se para a possibilidade de exercer essa função sem que isso se torne parte de si mesmo. A ação será mais eficaz quanto mais o seu agente a execute em benefício dela mesma e não para acentuar a identidade do seu papel.

O indivíduo consciente de si mesmo reconhece que seus pensamentos e crenças não são a sua identidade. Etimologicamente, idem, do latim, significa “o mesmo”. Identificar-se com algo é, literalmente, fazer dele o mesmo que si próprio. Identificar-se com o conhecimento ou com a moral seria a perda da dimensão da espiritualidade, porque reduziria o mistério ao dogma, seja da ciência, seja da religião. A abertura para o conhecimento do novo depende do exercício da dúvida metódica, postura impossível naquele que se identificou com o conhecimento ou com a moral. Em síntese, o mistério como abismo absoluto, impossível de ser conhecido, é a base da espiritualidade que permite o desapego, a humildade, a liberdade, o respeito ao pensamento divergente e uma mente aberta para a construção de um sistema aberto às novas contribuições.

O princípio ético

A ética é a reflexão sobre o que convém. Tem como objeto de reflexão a escolha de uma conduta considerada correta em detrimento de outras. A escolha é condição indispensável para se pensar a ética. Ela envolve a liberdade da pessoa que toma a decisão de refletir sobre a conduta que considera adequada.

A finalidade da ética é ser feliz. Como vivemos em comunidade, a infelicidade do outro pode nos prejudicar. Daí o princípio altruísta de que para ser feliz é preciso fazer feliz. A felicidade é um estado de harmonia vivida pela pessoa. Abrange o equilíbrio do seu corpo, a satisfação de suas necessidades de amor, poder e independência, e a percepção de que a vida tem um sentido.

Para sermos felizes, precisamos nos relacionar com os outros e com o meio em que vivemos. Embora cada um seja uma individualidade, separada dos outros e da natureza, o ser humano não vive só. Ele se relaciona com outras pessoas. E não existiria como ser humano sem ambiente social. Três princípios traduzem a finalidade da ética: não se prejudicar; não prejudicar o outro; e não deixar que o outro o prejudique. Esse triplo imperativo é condição para que o ser humano seja feliz e se realize como pessoa partícipe de grupos sociais.

Não se prejudicar implica cuidar da própria casa, isto é, do corpo e do planeta. O corpo, como morada do espírito, é a casa de si mesmo. O planeta também é casa do ser humano. Cuidar do corpo e do planeta são condições éticas inextrincáveis de quem se percebe hóspede. Constitui contradição irrefutável defender as florestas do planeta e se permitir ser um fumante.

Não prejudicar o outro significa ser capaz de vê-lo como alteridade a quem o respeito é fundamental. O prejuízo ao outro por meio da agressão, do roubo, da exploração ou da humilhação demonstra a incapacidade do indivíduo de ver-se separado daquele a quem desrespeita. Nesses casos, predomina a identificação com o outro, como se ele fosse parte de si mesmo. O indivíduo parece alienado de que a vida é trabalho que lhe compete, por seu próprio esforço e responsabilidade. Ele não consegue perceber a humanidade do outro.

Não deixar que o outro a prejudique significa a capacidade da pessoa estabelecer limites para conviver. Se não faz sentido prejudicar o outro, é absolutamente sem lógica permitir que uma pessoa permita que alguém a prejudique. Não faz sentido amar ao próximo mais do que a si mesmo. A noção de espiritualidade implica desapego no sentido de reconhecer que o corpo, os bens, os pensamentos, as crenças e os valores da pessoa não são a pessoa. Isso não significa de modo algum mutilar-se, fazer voto de pobreza, ser niilista e permissivo. Cuidado com a “própria casa” não significa recusar a “casa própria”.

A relação entre os 3 E’s e os 3 P’s

O princípio ecológico prevê o cuidado com o planeta, uma casa compartilhada por hóspedes diversos. O princípio ético implica o respeito a si e ao outro. O princípio da espiritualidade exige a percepção do mistério e sua celebração como possibilidade de transcendência. Em conjunto, os 3 E’s permitem ao indivíduo exercitar a compaixão, aceitar a realidade e colocar os seus talentos a serviço do aperfeiçoamento das pessoas e do mundo. Sua atuação ética será ao mesmo tempo ecológica porque contemplará o micro e o macro. Servir ao todo é servir a si mesmo. Aperfeiçoar-se é aperfeiçoar a dinâmica dos nossos relacionamentos, pedra angular da nossa atuação no mundo. Os 3 E’s se entrelaçam mutuamente.

Essa percepção da unidade entre os contrários – que preside a síntese entre os 3 E’s – unifica as aparentes contradições entre o individual e o social, o princípio (valor deontológico) e o fim (valor teleológico), a convicção e a utilidade. Ela é condição para se pensar a Ética nos Negócios como um campo de conhecimento não somente necessário como possível.

Do princípio ecológico extraímos a máxima de que a empresa é uma célula em um organismo social, em que tudo está interligado. Qualquer organização estabelece relação de interdependência com outras organizações e a sociedade em geral. Justamente por ser parte, é necessário evitar a intimidade e festejar a cerimônia com as outras partes – base do respeito. Como a empresa se relaciona com clientes, fornecedores, empregados, governo, acionistas, concorrência, e demais stakeholders, é fundamental para a empresa saber-se parte de um sistema. Esta é a base para a compreensão de relações do tipo ganha-ganha.

Da espiritualidade como princípio, extraímos a noção de que a vida não é passível de ser conhecida na sua totalidade, o que exige do gestor a humildade de colocar-se em diálogo com os pares e públicos interessados para construir juntos a solução para os problemas da organização. Responsabilidade social implica relacionamento com os públicos afetados pela empresa, ou seja, criação de canais de comunicação, trabalho conjunto, efetivação de parceria e espírito de coautoria em projetos comuns.

Da ética, deduzimos o princípio de que a conduta humana deve estar, em última análise, a serviço das pessoas. No campo dos negócios, esta premissa remete à humanização das relações com empregados, clientes, acionistas, fornecedores e demais públicos. Não podemos esquecer que tudo que envolve a atuação nas empresas, como trabalho, dinheiro, relacionamentos, projetos e sonhos, está a serviço da felicidade humana. Se a ética empresarial tem como meta os 3 P’s (em inglês, profit –lucro, people –pessoas, planet –planeta), fica claro que a dimensão da pessoa (people) deve presidir as demais.

A felicidade se realiza em cada um. Quem cultiva a espiritualidade, sentindo a presença do mistério dentro de si, abre-se ao encontro com o outro. Assim, pode ver que a vida tem um sentido maior que nossa existência. Essa dimensão de transcendência ajuda a ser feliz. E contribui para fazer do trabalho uma fonte de realização.

* Roberto Patrus-Pena ([email protected]) é colunista de Plurale, colaborando com artigos sobre sustentabilidade. É pesquisador e professor de mestrado e doutorado em Administração da PUC-Minas, filósofo, psicólogo e psicoterapeuta.

** Publicado originalmente no site Plurale.