Por mais de vinte anos, o quadro geral de semiestagnação da renda per capita foi acompanhado pelo empobrecimento do povo e pela desigualdade pró-rico. Isso porque a ausência de alternativas de maior rentabilidade produtiva pelo mercado interno transcorreu simultaneamente ao desenvolvimento sofisticado das finanças favoráveis à garantia de retornos extremamente elevados aos aplicadores no mercado financeiro.
A crise da dívida externa, no início da década de 1980, fragmentou e dissolveu o antigo bloco de poder que dirigiu politicamente o ciclo de industrialização nacional por cerca de meio século (1930 – 1980), ou seja, produtores de bens e serviços para o mercado interno. Em função das decisões de política econômica adotadas durante o último governo militar (Figueiredo, 1979-1985), dois novos protagonistas (exportadores e financistas) passaram a conduzir, em grande medida, a trajetória nacional durante as duas últimas décadas.
O resultado disso foi o predomínio do baixo dinamismo econômico e da grave oscilação no nível de produção (stop and go econômico). Em boa medida, a gravidade na situação do balanço de pagamentos levou à dependência maior de exportadores, especialmente de bens primários, na geração de saldos externos favoráveis ao atendimento dos serviços da dívida externa anteriormente contraída, sobretudo na década de 1970, e fortemente ampliada pela decisiva elevação real da taxa de juros nos Estados Unidos e demais países ricos durante a primeira metade dos anos de 1980.
Para a geração de elevados saldos de exportação, especialmente para um país que mal conseguia até então equilibrar suas contas externas, o Brasil terminou abandonando o seu próprio projeto nacional de desenvolvimento pela via do mercado interno. A opção pela recessão e contenção do mercado doméstico se mostrou fundamental para a obtenção e sustentação do saldo exportador, necessário para o pagamento dos juros dos serviços da dívida externa. Ou seja, a economia nacional não poderia crescer pelo mercado interno, pois isso tornava insustentável a manutenção das exportações.
Por mais de vinte anos, o quadro geral de semiestagnação da renda per capita foi acompanhado pelo empobrecimento do povo e pela desigualdade pró-rico. Isso porque a ausência de alternativas de maior rentabilidade produtiva pelo mercado interno transcorreu simultaneamente ao desenvolvimento sofisticado das finanças favoráveis à garantia de retornos extremamente elevados aos aplicadores no mercado financeiro. Exemplo disso foi o papel de destaque dos rentistas que, assentados no processo de endividamento público e de financeirização da riqueza, absorveram, em média, mais 6% de todo o Produto Interno Bruto (PIB) ao ano.
Em contrapartida, o aumento em mais de dez pontos percentuais do PIB da carga tributária, especialmente sobre os mais pobres, assumiu tarefa essencial na geração de significativa transferência de renda conjuntamente com a venda do patrimônio estatal e aumento do endividamento público. A ciranda das altas finanças operava quase que por compensação ao contexto de baixo dinamismo econômico interno no setor produtivo e em meio à superinflação e desorganização das finanças públicas.
Somente na primeira metade da década de 2000, o Brasil libertou-se da dependência externa, o que lhe permitiu passar da posição de devedor à de credor do Fundo Monetário Internacional. Ao mesmo tempo, passou a registrar desempenho econômico satisfatório, com crescimento da produção interna mais de duas vezes superior ao período anterior e queda real na taxa de juros alimentadora da ciranda financeira.
Alguns estudos recentes realizados pelo Ipea sobre o resultado das decisões de política econômica têm permitido conhecer melhor o Brasil que emerge atualmente após mais de duas décadas de aprovação da Constituição Federal de 1988. A expansão do fundo público em cerca de dez pontos percentuais do PIB se mostrou determinante para a reconfiguração das determinações no conjunto das atividades econômicas. Resumidamente, a consolidação de um novo elemento de disputa no âmbito das decisões de política econômica, para além dos dois principais protagonistas que hegemonizaram desde a grave crise da dívida externa do início da década de 1980.
Por exercer uma função-meio, não finalística, a economia deve comprometer-se com a geração de oportunidades que permitam elevar o padrão de vida do conjunto da população. Nesse sentido, as decisões de política econômica devem procurar considerar as melhores vias para que isso possa ocorrer. Após detalhado estudo das contas nacionais, o Ipea identificou que o impacto do gasto social no nível de produção se apresenta cada vez mais determinante para o impulso do conjunto das atividades econômicas internas. Para cada real gasto com educação pública geral, o resultado é de R$ 1,85 no PIB, enquanto o investimento de também um real na saúde resulta em R$ 1,70 no Produto Interno Bruto.
Nota-se, em síntese, que os investimentos na área social não resultam apenas em maior grau de proteção da população, mas também na promoção do desenvolvimento econômico. Para um país em construção como o Brasil, os investimentos sociais permanecem em igualdade de importância com os investimentos em atividades econômicas.
O contrário disso representa o aprisionamento das decisões de política econômica ao circuito da financeirização da riqueza, capaz de contra-arrestar parte dos esforços de elevação do padrão de vida da população. Dada a composição da dívida do setor público, o aumento de somente 1% na taxa de juros (Selic) implica a ampliação do adicional de quase R$ 6 bilhões ao ano no estoque do endividamento governamental. Ou seja, o crescimento de uma despesa pública cujos resultados produtivos se apresentam nulos para a geração de emprego da mão-de-obra, além de implicações desfavoráveis à taxa de câmbio. Se a taxa de juros relativa à de outros países for muito maior, o Brasil torna-se ainda mais atrativo ao ingresso de recursos estrangeiros nem sempre produtivos, podendo gerar maior desvalorização do dólar frente ao real. Ao fim e ao cabo, maior dificuldade de exportar e crescente pressão de importados.
O fortalecimento do real torna mais cara a produção interna e desfavorece a competição dos produtos nacionais com os externos, elevando a importação e a remessa de recursos ao exterior, anteriormente investidos no Brasil. Em contrapartida, cresce a pressão doméstica pela contração dos gastos públicos em decorrência do aumento das despesas com juros e estimula-se a desaceleração da economia em sua função de prover oportunidades crescentes para a elevação do padrão de vida da população.
É claro que ajustes táticos sempre podem ser compreensíveis desde que não se apresentem capazes de desarticular a estratégia maior da elevação do padrão de vida da população. O que significaria o retorno à dependência do bloco de poder constituído, principalmente por grandes exportadores de produtos primários e rentistas do endividamento público.
* Publicado originalmente na Revista Fórum, edição 96, em circulação nas bancas. Para assinar clique aqui.