Para Clara Marinho Pereira, a Economia Solidária não é nem nunca foi “um veículo do modo de produção socialista”. Ainda que tenha características solidárias, Clara diz que esta forma de economia “é um movimento que condensa as demandas dos segmentos que pertencem aos estratos mais desestruturados do mercado de trabalho brasileiro”. É por isso que, segundo a pesquisadora, a pauta desse setor é tão diversa, uma vez que “vai da educação ao crédito, das tecnologias sociais à igualdade de gênero”.
Em entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail, Clara avaliou o panorama atual da Economia Solidária e a construção do Projeto de Lei 865/2011, e falou sobre o lugar da Economia Solidária no atual processo do capitalismo.
Clara Marinho Pereira é graduada em Administração pela Universidade Federal da Bahia e é mestre em Desenvolvimento Econômico com concentração em Economia Social e do Trabalho pelo Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Fez parte da Associação de Fomento à Economia Solidária (BanSOL). Atualmente, é assessora técnica da Rede Integrada de Segurança Alimentar e Nutricional (RedeSan) do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as principais determinantes da possibilidade de geração de bem-estar socioeconômico das iniciativas de Economia Solidária?
Clara Marinho Pereira – A pesquisa [1] que realizei permite afirmar que há evidências de que a geração de bem-estar das iniciativas solidárias está associada a um maior número de sócios-trabalhadores, a um menor número de mulheres, à organização sob a forma jurídica cooperativa, à dedicação a atividades econômicas rurais, ao acesso a um maior montante de crédito e de realização de investimentos, a um menor número de atividades realizadas coletivamente, a uma maior participação em conselhos de políticas públicas, à integração econômica com outras iniciativas solidárias, e ao desenvolvimento de ações sociais, entre outros aspectos.
Como se vê, é um conjunto de características bastante contraditórias, que ora aproxima, ora afasta a Economia Solidária do conceito proposto pela sua principal organização política, o Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), elaborada em conjunto com a Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes).
IHU On-Line – A Economia Solidária ainda pode ser considerada como um veículo do modelo de produção socialista?
Clara Marinho Pereira – Não considero que a Economia Solidária seja ou já tenha sido um veículo do modo de produção socialista. Aqui e ali, podem-se encontrar iniciativas solidárias capazes de gerar excedentes em quantidade e regularidade tal que impliquem rendimentos que permitam aos seus sócios terem uma existência material digna e mais: que permitam ao seu entorno social captar benefícios das suas atividades econômicas e políticas.
Mas essa condição não é generalizável no modo de produção do capital. O que o meu trabalho conduz a afirmar é que, em seu conjunto, a Economia Solidária é dependente de recursos externos e, dadas as suas características organizativas e mobilizatórias, somente o Estado – como instituição que condensa diferentes interesses, agrega e redistribui o excedente social – e frações progressistas da sociedade civil, interessadas em manter as suas características, são capazes de prover sua reprodução.
IHU On-Line – Como você analisa esse movimento que pede a criação, por parte do governo, da Secretaria Especial de Economia Solidária? Essa secretaria poderia ajudar de que forma no desenvolvimento da Economia Solidária no Brasil?
Clara Marinho Pereira – Há que se notar que o Projeto de Lei 865/2011 [2] pouco observou o trabalho elaborado pelo Conselho Nacional de Economia Solidária (CNES), que condensa as diversas demandas e perspectivas do movimento. De todo modo, acredito que o reforço de uma política pública de Economia Solidária pode propiciar pelo menos três ganhos.
Primeiro, o aumento e o aporte regular de recursos para o programa Economia Solidária em Desenvolvimento, o qual considero diminuto e bastante sujeito às restrições macroeconômicas.
Segundo, a ampliação do crédito e de mercados institucionais para os produtos e serviços solidários, especialmente os urbanos. Penso que as iniciativas rurais já têm um caminho bastante promissor, por conta do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE) e do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), entre outros programas.
Por último, o fortalecimento mesmo das iniciativas, cuja maioria carece de incentivos.
IHU On-Line – A Economia Solidária pode ser entendida como um movimento político?
Clara Marinho Pereira – Sim. A Economia Solidária é um movimento que condensa as demandas dos segmentos que pertencem aos estratos mais desestruturados do mercado de trabalho brasileiro. E é por isso que sua pauta é tão extensa e diversa: ela vai da educação ao crédito, das tecnologias sociais à igualdade de gênero. Isto é bastante positivo na cena política brasileira.
Estamos acostumados às pautas dos sindicalizados “politizados”. Mas é preciso considerar suas limitações. Por exemplo, diversas das suas demandas concentram-se em políticas de ativação do mercado de trabalho. É o caso da proposta de provisão de crédito aos setores urbanos. Pouco adianta prover as iniciativas solidárias de instrumentos bastante democráticos e aperfeiçoados em relação às experiências em curso sem casá-las com as necessidades sociais.
É preciso vincular as cooperativas têxteis com a provisão de uniforme escolar, a urbanização de favelas com cooperativas de trabalhadores da construção civil, a agricultura periurbana com os planos diretores, etc. Até que ponto isto é intransigentemente pautado pela Economia Solidária? Enfim, é uma pergunta para provocar.
IHU On-Line – O surgimento da Economia Solidária no Brasil tem uma forte ligação com os movimentos e o momento político vivido pelo país na década de 1980. E hoje, quando a Economia Solidária surge em uma comunidade? Como você avalia o panorama atual da Economia Solidária no Brasil?
Clara Marinho Pereira – Penso que o sucesso econômico e a origem militante de algumas iniciativas – como é o caso do Banco Palmas, da Justa Trama, de algumas oriundas dos Projetos Alternativos Comunitários, etc. – são pontos de partida para a criação de diversas outras experiências. “Se deu certo lá, por que não aqui?”
Outro ponto são as políticas públicas: elas têm sido indutoras de processos de organização em comunidades. E mesmo processos patrocinados por organizações multilaterais, como o Banco Mundial, são responsáveis pela criação de organizações que se reconhecem como pertencentes à Economia Solidária. Em suma: ela é um universo de múltiplos sujeitos e objetivos, mais ou menos próximos de ideários de emancipação social construídos no ocidente desde o Século 19.
IHU On-Line – Você analisa três teses acerca da Economia Solidária. É diferente o entendimento que se tem sobre a Economia Solidária como um movimento socialista em comparação com a Economia Solidária como um movimento anticapitalista?
Clara Marinho Pereira – Sim. A primeira tese, que localizo em Singer [3], vislumbra as iniciativas solidárias como veículos do modo de produção socialista. A segunda tese, que encontro em Gaiger [4], não aponta que a Economia Solidária engendre um novo modo totalizante de organização social, mas concorda com Singer que elas elaboram relações sociais de produção diferentes (atípicas) e contrárias às capitalistas (anticapitalistas). Bem, eu discordo de Singer e em parte, de Gaiger.
Para mim, os aspectos democráticos das iniciativas solidárias não são suficientes para mudarem ou se oporem às relações capitalistas de produção, seja porque são produtoras de mais-valia – ainda que não sob a forma típica do assalariamento –, seja porque não deixam de alimentar a reprodução do exército de reserva. Encontro a explicação disso numa terceira tese, aquela de Rosângela Barbosa, que qualifica a Economia Solidária como forma precária de ocupação social. Concordo com diversos elementos da tese desta autora, mas por outro lado, considero que Gaiger desvenda melhor os elementos cotidianos do trabalho solidário. Enfim, lendo minha dissertação se entende melhor o que estou tentando afirmar aqui brevemente.
IHU On-Line – Qual o lugar da Economia Solidária hoje dentro de processo capitalismo? Quais seus limites frente a esse processo capitalista da economia atual?
Clara Marinho Pereira – Não há “um lugar”, mas lugares. A Economia Solidária está presente nos processos de terceirização da produção capitalista privada e estatal, nos intentos de produção comunitária, na recuperação de empresas. Seus sujeitos estão aí por conta do “excedente estrutural de mão de obra”, tomando emprestado o conceito de Furtado, e por conta da crise capitalista desencadeada nos anos 1970.
Seus limites são dados por aqueles determinantes, que mencionei no início da entrevista, e por três condicionantes mais gerais. Primeiro, o mercado, que “cria, destrói e recria” os espaços em que ela pode exercer suas atividades econômicas e seus modos de gestão. Depois, a subdesenvolvida e heterogênea estrutura econômica brasileira, que é assentada em uma grande concentração da propriedade e da renda, possui níveis díspares de produtividade e de remuneração, desemprega um imenso contingente de pessoas e discrimina jovens, mulheres, idosos, negros, rurais, etc. Por fim, a política social, que tem sido historicamente incapaz de reverter esses “estímulos” à pobreza e à desigualdade.
Mas limites econômicos não são tão apressadamente limites políticos, de modo que os trabalhadores da Economia Solidária têm espaço para lutar por vigorosos aportes públicos associados a reformas estruturais, com o propósito de conduzir seus partícipes e à sociedade em geral a um horizonte mais justo e democrático.
Notas:
[1] Na pesquisa intitulada Economia Solidária: Uma Investigação sobre Suas Iniciativas, Clara Marinho Pereira investigou os alcances e limites da Economia Solidária. A orientação da tese foi feita pelos professores da Unicamp, Márcio Pochmann e José Dari Krein.
[2] O Projeto de Lei 865/2011 vem para alterar a Lei 10.683/2003, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, cria a Secretaria da Micro e Pequena Empresa, cria cargo de Ministro de Estado e cargos em comissão, e dá outras providências, como a transferência da responsabilidade das atribuições da Economia Solidária. Pela proposição, esta Secretaria terá status de Ministério e será responsável pela formulação de políticas de cooperativismo, associativismo, microempreendedorismo e microcrédito, além de dirigir o Conselho Nacional de Economia Solidária.
[3] O economista Paul Singer nasceu na Áustria, mas vive no Brasil desde 1940. Em 1980, ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores. Trabalhando atualmente com o tema da Economia Solidária, Singer ajudou a criar a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP, em 1998, quando foi convidado pela Cecae para assumir o cargo de coordenador acadêmico da Incubadora. A partir de junho de 2003, o professor passou a ser o titular da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), que implementou, a partir de junho de 2003, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego.
[4] Luiz Inácio Gaiger é doutor em Sociologia da Religião e dos Movimentos Sociais pela Université Catholique de Louvain e foi coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos, onde é professor atualmente.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.