A luta por uma educação pública e igualitária deve estar na pauta das lutas políticas nos mesmos níveis das demais lutas sociais e econômicas.
Uma das características mais perversas da sociedade brasileira é a desigualdade de renda. Nas últimas décadas, chegamos a ocupar a pior posição entre todos os países. Mesmo considerando certa melhoria mais recentemente, ainda estamos entre os 12 países mais desiguais do mundo, juntamente com a África do Sul, o Chile, o Paraguai, o Haiti, Honduras, entre outros.
Enquanto entre nós os 10% mais ricos têm uma renda média (familiar per capita) mais do que 50 vezes maior que os 10% mais pobres, nos antigos países socialistas que ainda preservam algumas conquistas sociais (Eslováquia, República Checa e Hungria entre eles), ou nos países que têm ou tiveram recentemente influências socialistas relativamente fortes (como os países nórdicos, por exemplo), essa mesma relação é da ordem de cinco vezes. Mesmo nos países de economia fortemente liberal, Estados Unidos entre eles, essa relação está na faixa entre dez e 20 vezes. O que ocorre aqui é simplesmente escandaloso.
Muitos fatores estão na origem dessa situação, entre eles o sistema econômico, a ausência de uma reforma agrária real e efetiva, as heranças do escravagismo, a repressão aos movimentos sociais organizados, o monopólio dos meios de comunicação usados para propaganda das “verdades” que interessam às elites, e as políticas educacionais excludentes.
De fato, a educação tem sido um importante instrumento para a reprodução das desigualdades. Vejamos alguns dados que ilustram como e com que intensidade isso ocorre.
Atualmente, três em cada dez crianças abandonam a escola, em definitivo, antes de completar o ensino fundamental e praticamente a totalidade delas vem dos setores economicamente mais desfavorecidos. Como o investimento anual na educação dessas crianças está na casa dos R$ 2 mil ou R$ 3 mil, todo o investimento ao longo da vida pode não exceder os R$ 10 mil ou R$ 20 mil. No outro extremo, onde estão os mais ricos, o investimento por criança e por ano pode exceder – e em muito, se considerarmos as escolas de elite e incluirmos cursos de línguas, aulas particulares, material didático, viagens culturais, etc. – os R$ 30 mil por ano. Ao longo de toda a vida escolar, esse investimento pode chegar a R$ 500 mil, ou ainda muito mais que isso.
Essa perversa desigualdade na formação educacional, quando combinada com a dependência da renda de uma pessoa adulta com seu nível de escolarização, fecha um círculo vicioso extremamente perverso. Em valores aproximados, segundo vários levantamentos feitos por especialistas, cada ano de escolaridade a mais de uma pessoa implica um aumento de renda da ordem de 10% a 20% (variação essa devida à época, à sistemática adotada no levantamento dos dados e aos níveis escolares considerados). A qualidade da educação, por sua vez, medida, por exemplo, pelo nível escolar do professor, pode contribuir com uma diferença de cerca de 50% na renda de pessoas com mesmos níveis de formação educacional.
Assim, ao escolarizar mal as crianças e jovens mais desfavorecidos, nosso sistema educacional está contribuindo para preservar ou mesmo acirrar nossas desigualdades econômicas, respondendo aos desígnios das elites econômicas, que consideram inaceitável qualquer destinação de recursos públicos para fins sociais, inclusive para a educação pública. Programas como o Bolsa Família e sua extensão, o Brasil Sem Miséria, ainda que sejam importantes instrumentos de distribuição de renda, têm efeitos apenas nos casos de pauperização extrema, pouco contribuindo para combater as raízes do problema da distribuição de renda. Para isso, seriam necessários instrumentos mais permanentes e mais sólidos, que viabilizassem a desconcentração de renda em longo prazo. E a educação é um deles.
A luta por uma educação pública e igualitária deve estar na pauta das lutas políticas nos mesmos níveis das demais lutas sociais e econômicas, como a reforma agrária, a luta por moradia, a defesa do setor público e a luta por salários dignos. Se não rompermos com a atual situação educacional – e esse rompimento só será possível por meio de uma ampla luta social –, jamais construiremos bases realmente sólidas para superarmos nossa desigualdade.
* Otaviano Helene é professor associado do Instituto de Física, presidiu a Adusp (Associação de Docentes da Universidade de São Paulo) de julho de 2007 a junho de 2009, e foi presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais).
** Publicado originalmente no site Brasil de Fato.