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A educação sexual integral, pendência na América Latina

Alunos da primeira escola pública rural Cornelio Saavedra, na localidade de Bower, na província argentina de Córdoba. A educação sexual integral chega com especial dificuldade aos centros rurais da Argentina e do resto da América Latina. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS
Alunos da primeira escola pública rural Cornelio Saavedra, na localidade de Bower, na província argentina de Córdoba. A educação sexual integral chega com especial dificuldade aos centros rurais da Argentina e do resto da América Latina. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS

 

Buenos Aires, Argentina, 13/10/2014 – Na maioria dos países latino-americanos a educação sexual chegou às escolas, mas com um enfoque quase sempre restrito à prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, que não modifica substancialmente o comportamento dos adolescentes, sobretudo nas camadas mais pobres. O compromisso de uma Educação Sexual Integral (ESI) foi assumido durante a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo em setembro de 1994.

Naquela ocasião, foi incorporado um enfoque de direitos humanos e gênero, para que mulheres e homens possam desfrutar plenamente sua saúde e seus direitos sexuais e reprodutivos, incluindo aspectos emocionais, psicológicos e afetivos, além da capacidade de aceitar o direito ao prazer.

“Embora se tenha avançado um pouco na inclusão da educação sexual e reprodutiva nos currículos na América Latina e no Caribe, constatamos que nem todos os países e suas diferentes jurisdições conseguiram incorporar esses conceitos plenamente nas atividades em sala de aula”, pontuou à IPS a coordenadora do Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), a paraguaia Elba Núñez.

O estudo Sistematização Sobre Educação da Sexualidade na América Latina, divulgado em 2010 pelo Cladem, destaca que Argentina, Brasil, Colômbia, México e Uruguai são os países que mais se aproximam do conceito educacional de sexualidade integral. Também são os que legislaram à respeito. Outros, como Costa Rica, Chile, El Salvador, Guatemala e Peru mantêm enfoques de “abstinência” e métodos anticoncepcionais, e enfatizam os aspectos espirituais da sexualidade, a importância da família e a necessidade de retardar o início da atividade sexual.

Mas em todos subsistem problemas “quanto ao gozo e exercício desse direito”, especialmente nas minorias étnicas e rurais, ressaltou Núñez, coincidindo com outras especialistas que analisaram para a IPS a situação regional da ESI. Também há dificuldades para aplicar os programas em suas regiões, com em Argentina, Brasil e México.

Na Argentina, em 2006, foi aprovada a Lei Nacional de Educação Sexual Integral, que criou um Programa Nacional de Educação Sexual Integral. Um êxito “importante” para Ana Lía Kornblit, do Instituto de Pesquisas Gino Germani, porque permite “exercer um direito que antes não existia”. Mas em algumas províncias não são usados os materiais didáticos, “que são de alta qualidade, afirmando que não estão de acordo com alguns de seus conteúdos e que pretendem criar materiais de acordo com os valores culturais e religiosos locais”, acrescentou.

Segundo o Cladem, a influência religiosa conservadora também é um obstáculo ao “enfoque de gênero e direitos, e sua vinculação com a sexualidade”, mesmo quando muitas constituições latino-americanas reconhecem a liberdade de culto. Mabel Bianco, presidente da Fundação para Estudo e Pesquisa da Mulher (Feim), da Argentina, resumiu a realidade dominante: “meninas e meninos podem ver de tudo na televisão ou estão expostos à internet, enquanto na escola não se fala disso por medo de incentivá-los a ter relações sexuais”.

“Mas em todos os meios de comunicação tudo está erotizado, com o que se incita os jovens, e, pior, estes não têm ferramentas para resistir à pressão dos colegas e da sociedade para se iniciarem sexualmente”, apontou Bianco, acrescentando que a ESI “lhes permitiria dizer não a relações sexuais que não querem ter”.

Lourdes Ramírez, de 18 anos, acaba de concluir o ensino secundário em uma escola pública de Mendiolaza, na província argentina de Córdoba, e contou à IPS que em sua escola muitos pais dos primeiros anos do secundário “armam uma confusão” quando acontecem aulas desse tipo, “porque dizem que seus filhos são pequenos e que essas aulas os farão ter relações sexuais precoces”.

“É um absurdo se ver de tudo na televisão, programas de moças com tangas minúsculas e na escola não se poder ensinar como usar um preservativo ou a terem a relação quando quiserem”, opinou Ramírez. Em seu centro, os livros didáticos do Ministério da Educação chegavam “mas ficavam na biblioteca à disposição” de quem quisesse consultá-los, contou.

A argentina Cristina Zurutuza, do Cladem, considera que o problema principal é que na região não se modificam “os padrões socioculturais sexistas e estereótipos culturais”, embora alguns governos, como o de seu país, incentivem “iniciativas para retirar conteúdo sexista, racista e xenofóbico dos livros didáticos”.

Segundo a dominicana Zobeyda Cepeda, também integrante do Cladem, na maioria da região prevalece uma abordagem “biológica ou religiosa, focada na sexualidade apenas dentro do casamento”. Falências que se traduzem na segunda taxa regional mais alta de gravidez de adolescentes (38% das mulheres engravidam antes de completarem 20 anos) e também incidindo em uma elevada deserção escolar.

Carmen Dueñas, professora de biologia do ensino secundário em Berazategui, que fica a 23 quilômetros de Buenos Aires, contou que surpreende que, mesmo se explicando aos alunos quais são os métodos anticoncepcionais disponíveis, “muitas queiram engravidar. Pensam que com isso mudarão sua situação afetiva. Que terão alguém a quem se aferrar e que dessa forma terão um papel protagonista em sua vida, ao ter uma família própria”, disse a docente, que integra um projeto municipal-nacional de ESI.

“Há uma porcentagem significativa de conflitos e violência em famílias, onde os adolescentes não se sentem inseridos, já que dentro do âmbito familiar há separações repetidas, violência familiar, abuso, álcool e drogas”, pontuou Marité Gowland, especialista em educação pré-escolar de Florencio Varela, a 38 quilômetros da capital argentina.

“Tudo isso faz os adolescentes repetirem o modelo e por isso têm dificuldade em levar para a prática o que aprendem na escola. Em muitos colégios há espaços onde as crianças podem falar de seus problemas, mas a escola sozinha não pode resolvê-los”, lamentou Gowland. Segundo Bianco, ainda “se perpetuam modelos e papéis estereotipados, como ser mulher é igual a ser mãe”.

O projeto de Berazategui busca romper esse modelo por meio de um filme que aborda o caso de uma moça que, violada por seu padrasto, fica grávida, mas que ao falar com sua professora consegue “ir em frente” e continuar estudando. “Escolhemos isso porque às vezes temos pistas de que há casos assim. Vemos isso em adolescentes que apanham porque seus namorados são ciumentos”, disse Dueñas.

O uso de camisinha é ensinado por meio de jogos. O ensino “transversal”, no qual várias matérias abordam o mesmo tema, foca a violência de gênero. As aulas incluem a diversidade sexual para “mostrar-lhes que são livres para agir”. As perguntas, anônimas, são colocadas em uma caixa.

“Há meninas que comentam que, embora não tenham tido sua primeira menstruação, como têm namorados mais velhos, mantêm relações sexuais. Depois se dá uma resposta em grupo”, explicou Dueñas. O fórum virtual Disto se Fala, do Feim com a Rede Nacional de Jovens e Adolescentes para a Saúde Sexual e Reprodutiva, resume essa necessidade de compartilhar. Envolverde/IPS

* Este artigo foi publicado originalmente na edição especial do TerraViva: ICPD@20: Acompanhamento e Potencial Para Depois de 2015, publicado com apoio do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). O conteúdo é de autoria independente dos jornalistas da IPS.