A Alemanha aplica cerca de 11% do seu PIB no sistema de saúde e tem 92% de sua população coberta por um “sistema legal de saúde”, mas também há insatisfação, sobretudo no inverno, quando faltam médicos e enfermeiros em um período no qual se multiplicam as doenças respiratórias.
O sistema de saúde alemão é frequentemente descrito como “eficiente e deficiente”.
Eficiente
92% da população está coberta por um “sistema legal de saúde”, que garante um atendimento básico que é efetivo, em 1.100 agentes no setor. A grande maioria das instituições de atendimento é pública ou, no mínimo, não lucrativa. A Alemanha aplica cerca de 11% do seu PIB no sistema de saúde. As estatísticas oficiais recentes dizem que 87,5% das pessoas cobertas por algum seguro saúde estão no setor público, e 12,5 % recorrem ao setor privado. Outras fontes situam esses números em 85% e 15%, respectivamente.
Os assalariados são obrigados a ter no mínimo um seguro saúde público. Para passar a um sistema privado, o assalariado deve estar na função pública, ser autônomo ou ganhar acima de 50 mil euros por ano. Depois de passar para um sistema privado, a volta ao sistema público não é mais possível. O seguro saúde básico custa normalmente 15,5% da renda do assalariado, e cobre também seu núcleo familiar próximo (cônjuge e filhos), e tem cobertura também por parte do empregador. Um desempregado tem sua coparticipação no financiamento do sistema de saúde reduzida, e tem também acesso gratuito ou de preço simbólico a uma lista oficial de remédios.
Por lei o(s) seguro(s) saúde(s) também cobre(m) tratamentos de longo prazo e acidentes de trabalho. No caso de um trabalhador, o seguro de longo prazo cobre casos em que a pessoa perde a capacidade de gerir a própria vida (por doença, idade, deficiência) e é custeado meio a meio por empregado e empregador. O seguro para acidentes de trabalho é coberto inteiramente pelo empregador.
O sistema de saúde alemão é apontado como o mais antigo do mundo com caráter universal. Desde o começo do Século 19, alguns estados que hoje compõem a Alemanha começaram a adotar sistemas públicos. Mas o grande salto foi dado com a política descrita como de “conservadorismo revolucionário” adotada a partir de 1883 por Otto von Bismarck, chanceler da Prússia e depois da Alemanha, de 1862 a 1890. Entre 1883 e 1889, Bismarck fez passar no parlamento alemão um conjunto de legislação trabalhista que incluía, além do sistema público de saúde (então para trabalhadores de baixa renda), a aposentadoria para idosos, seguro para acidentes de trabalho e seguro desemprego.
O objetivo de Bismarck era duplo: de um lado, neutralizar politicamente os socialistas, e do outro, conter a emigração de trabalhadores para o exterior para fortalecer a crescente industrialização do país. Deve-se dizer que ele conseguiu, pelo menos em parte, seus objetivos, contando também com uma legislação repressiva contra os esquerdistas vistos como mais radicais ou “exaltados”, como se dizia então. Obteve o apoio da burguesia alemã ascendente e do Rei da Prússia, depois imperador da Alemanha como Guilherme I. Muitos trabalhadores passaram a desistir de emigrar para os Estados Unidos, por exemplo, onde os salários eram maiores mas o sistema de seguridade social não existia, além de ser grande também a repressão sobre os movimentos de trabalhadores.
Entretanto, Bismarck encontrou seu Waterloo a partir da grande greve dos mineiros de 1889, que provocou divergências entre sua política, que queria endurecer a repressão sobre socialistas e esquerdistas de um modo geral, e a imagem condescendente que o novo imperador Guilherme II queria construir. Além disso, uma série de outras divergências e intrigas cortesãs provocaram a queda do “Chanceler de Ferro”, como ele era chamado. Mas a legislação ficou, e se ampliou.
Deficiente
Há muitas reclamações dispersas sobre a prática do atendimento de saúde na Alemanha, pressionado também, como em outras partes do mundo, por políticas de redução de custos num momento em que a taxa de mortalidade infantil é cada vez menor (4,7 x 1.000 habitantes) e a longevidade cada vez maior (segundo estatísticas oficiais de 2010, 77,4 anos para homens e 82,6 para mulheres). A maior parte da insatisfação se concentra na falta de médicos e enfermeiros, sobretudo em momentos críticos, como no inverno, em que se multiplicam as doenças respiratórias (como em outras partes do mundo) e cresce o atendimento ortopédico, devido a fraturas e torções provocadas por quedas no gelo e na neve.
São comuns as salas de espera superlotadas, o que exaspera médicos, enfermeiros e atendentes, além dos pacientes. Esta carência provoca outras, que entram na lista das reclamações. Diminui o tempo dedicado a cada paciente, que às vezes não passa de cinco a dez minutos, e aumenta o número de exames pedidos, seja por automatismo, seja porque médicos, conforme os planos de saúde, recebem também por cada procedimento laboratorial que recomendam. Também aumenta uma postura defensiva por parte de atendentes e médicos, que, às vezes, nos casos mais prementes de superlotação, tentam dissuadir pacientes da necessidade do atendimento em casos não urgentes ou mesmo mais leves, sugerindo a procura do médico particular.
Uma medida dramática dessas deficiências foi dada durante a recente epidemia de um tipo extremamente agressivo de Escherichia Coli, que provocava de hemorragias fatais a distúrbios neurológicos. Doença mais tradicional de países tropicais ou de sistema de saúde mais frágil, o surto da EHEC, como ficou conhecida, surpreendeu os médicos, o sistema, e até o Ministério da Saúde. Ele começou no norte da Alemanha, em Hamburgo, onde os primeiros casos foram registrados em 1º de maio deste ano. Sua manifestação mais evidente era uma infecção intestinal, e a causa mais provável era a ingestão alimentos contaminados. O surto progrediu sem intervenção preventiva até 19 de maio, quando um médico daquela região, impressionado pelo número de casos que chegavam ao hospital onde trabalhava, informou o que estava ocorrendo ao Instituto Robert Koch, de Berlim, o centro nacional de pesquisa e controle sobre epidemias e endemias.
Nesses 18 dias entre os primeiros casos e o alarme, preciosas informações se perderam, entre elas, num primeiro momento, a da fonte precisa das primeiras infecções. O número de doentes superlotou a capacidade hospitalar da região e de outras regiões também acionadas; os casos começaram a se espalhar pelo país e pela Europa, na grande maioria das vezes relacionados a pessoas que tinham passado pelo norte da Alemanha. Ao lado de um clima de perplexidade instalado pela ocorrência de algo “típico do terceiro mundo”, instalou-se em parte da mídia, e nos produtores de produtos agrícolas da região (apontados como a fonte primária da bactéria), uma busca frenética por “outros culpados”.
Inicialmente, apontou-se o “pepino espanhol” como culpado. Quando a suspeita se desfez, os agricultores daquele país já tinham amargado um prejuízo de 200 milhões de euros. A Rússia suspendeu a importação de legumes e verduras de toda a Europa, levando os prejuízos à casa dos bilhões, e as doses de adrenalina por causa de mais essa crise a se abater sobre o continente a níveis incontroláveis. Enquanto isso, os casos subiam aos milhares, os graves às centenas e os óbitos cresciam geometricamente.
No fim de contas culpou-se uma cepa de brotos de feijão pelo surgimento desse tipo de bactéria, e o fato de atribuir-se a essa cepa uma procedência egípcia serviu para aplacar as consciências. Mas ficaram de pé algumas constatações, como a de que não houve surto no Egito, mas sim na Alemanha; e a de que a falta de circulação da informação e de coordenação no sistema agravou a situação.
Epílogo: a Alemanha continua tendo um dos melhores e mais altos padrões de vida do mundo e da Europa, apesar da crise que desde 2007-2008 penaliza as economias da região. Isto inclui novos desafios, como, por exemplo, o de que ela tem o maior número absoluto de casos de obesidade do continente. Algumas fontes listam a Alemanha como o 43º país do mundo em percentual de obesos (seja a obesidade patológica ou simplesmente produzida por hábitos deficientes de alimentação): 60,1%.
Isso tende a sobrecarregar ainda mais um sistema que enfrenta também as políticas de cortes lineares em gastos públicos. O que ajuda a conter essa tendência é a participação pró-ativa nas políticas públicas do setor, que conta com conselhos renovados periodicamente, compostos por representantes de empregadores, trabalhadores, médicos, hospitais, agências públicas e privadas, além da indústria farmacêutica, num estilo cujas raízes remontam às políticas implementadas pelo “Chanceler de Ferro”.
* Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.
** Publicado originalmente no site Agência Carta Maior.