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Egito à mercê de curandeiros, bruxos e falsos médicos

Muitas farmácias e lojas de ervas no Egito prescrevem sua própria wasfa (droga secreta, ou elixir de ervas). Foto: Cam McGrath/IPS
Muitas farmácias e lojas de ervas no Egito prescrevem sua própria wasfa (droga secreta, ou elixir de ervas). Foto: Cam McGrath/IPS

 

Cairo, Egito, 19/9/2014 – Magda Ibrahim soube que tinha câncer de endométrio quando dores na bexiga e uma menstruação anormal a levaram ao médico. Como não podia pagar o tratamento recomendado e não tinha seguro médico, esta viúva de 53 anos optou por uma alternativa mais barata e, acreditava ela, mais rápida.

Um xeque muçulmano local dizia realizar tratamentos espirituais e, mediante uma doação conveniente, curava o câncer. Mas, como os sintomas persistiam, Ibrahim consultou uma loja de ervas popular, cuja wasfa (droga secreta, ou elixir de ervas) tinha fama de reduzir os tumores.

“Me senti muito melhor durante alguns meses  e pensei que o tumor estava diminuindo. Mas depois piorei”, disse à IPS. Quando Ibrahim voltou ao hospital no ano seguinte, os exames revelaram que ainda tinha o tumor e que o câncer havia se espalhado para os gânglios linfáticos. Inclusive, a mistura de ervas que tomava lhe causaram problemas renais.

O Egito é um manancial desse tipo de medicina, disse à IPS o pediatra Ahmad Bakr, promotor de uma reforma da saúde. Os sucessivos governos não fizeram muito para regular o setor, nem para educar a população sobre esse problema. Esta ficou vulnerável, sem ter acesso aos serviços de saúde e à mercê de profissionais mal preparados, curandeiros e charlatães.

“Nosso sistema de saúde está profundamente deformado”, afirmou Bakr. “A falta de dinheiro, a corrupção e a ignorância estão presentes em todos os níveis, desde no governo e nos médicos, até nos próprios pacientes”, pontuou. A regulamentação frouxa e a falta de sanções criaram um espaço para que médicos sem a devida capacitação realizem cirurgias plásticas em clínicas móveis, vendam tônico de serpente na televisão a cabo e se interessem perigosamente pela saúde reprodutiva, ressaltou.

Estima-se que uma em cada cinco clínicas privadas no Egito funciona sem habilitação oficial e suspeita-se que milhares de supostos profissionais trabalhem com credenciais falsas ou sem formação adequada. “Há muitos desses mal chamados médicos que exercem a medicina no Egito. A maioria trabalha em pequenas clínicas, mas também são encontrados em hospitais de renome”, detalhou Bakr.

O próprio exército chegou a anunciar, em fevereiro, que havia inventado um dispositivo que detectava à distância a hepatite C, o HIV (vírus causador da aids) e a gripe A (H1N1), conhecida como “gripe suína”, entre outras doenças. O aparelho, que supostamente detectava as ondas eletromagnéticas emitidas pelas células do fígado infectado, se baseia em um falso detector de bombas comercializado por um britânico especialista em fraudes.

O exército também assegurou ter inventado uma máquina revolucionária de diálise que curava hepatite C, HIV e até câncer, mediante um único tratamento. “Fiquei surpreso de terem feito essas incríveis afirmações, quase sem evidência clínica”, declarou Mohamed Abdel Hamid, diretor do estatal Laboratório de Pesquisa de Hepatite Viral. “Com cada novo tratamento, devem ser feitos testes clínicos duplo cego e avaliados por outros especialistas antes do anuncio público”, explicou à IPS.

Muitos críticos afirmam que o governo contribui para o ambiente de irresponsabilidade que caracteriza o setor. A imprensa estatal exagera as ameaças sanitárias e alimenta a histeria pública, enquanto as reações sem reflexão das autoridades, incluindo os altos funcionários, se tingem de motivos políticos.

Em 2009, em resposta à pandemia da gripe A (H1N1), alguns legisladores excessivamente fervorosos aprovaram uma moção para sacrificar os 300 mil porcos do país, porque inicialmente a doença era conhecida como gripe suína. Mas não havia provas de que os porcos transmitissem o vírus para os humanos e nem este fora detectado no Egito. Apesar disso, alguns funcionários, motivados pela proibição islâmica de comer porco, aproveitaram que um vírus tinha um nome semelhante para livrar esse país de maioria muçulmana de seu rebanho suíno.

“A maior parte desses animais era de pobres zebaleen (coletores de lixo) cristãos que os usavam para digerir a matéria orgânica”, explicou Milad Shukri, líder dessa comunidade. “Milhares de famílias perderam sua fonte de renda por um decreto absurdo, sem bases científicas”, acrescentou.

As pandemias globais, como a síndrome respiratória aguda severa e a gripe aviária, entre outras, foram uma excelente oportunidade para que a miríade de charlatães e fraudadores se aproveitasse das massas desinformadas.

“Com cada susto sanitário, se repete o mesmo padrão”, explicou à IPS o farmacêutico Amgad Sherif, na capital. “As pessoas entram em pânico e jogam a ciência pela janela. A falta de educação e o grande analfabetismo predispõem as pessoas a acreditarem até nos argumentos médicos mais ridículos”, afirmou.

Quando nuvens de gafanhotos do deserto inundaram o Cairo, charlatães empreendedores publicaram anúncios na imprensa local oferecendo “vacinas contra os gafanhotos” aos cidadãos preocupados. Não surpreende que o soro injetado, que resultou ser água de torneira com corante de alimentos na cor laranja, não oferecesse nenhuma proteção contra o “veneno do gafanhoto”. Mas deixou as pessoas enganadas mais pobres e vulneráveis à hepatite C, por exemplo, pelo uso de agulhas não esterilizadas.

“Para quem faz isso, só importa ganhar dinheiro à custa de pessoas mal informadas”, lamentou Sherif. “Nada sabem de medicamentos, nem seguem as normas de higiene mais básicas”, acrescentou.

Em um conhecido caso de fraude, pessoas que se faziam passar por funcionários da saúde percorreram bairros de classe baixa e média oferecendo “medicina preventiva” cara para doenças infecciosas. O falso pessoal médico, vestindo aventais de laboratório e insígnias imitando as oficiais, administrou falsas vacinas a famílias desprevenidas. “Às vezes, dão injeção nas pessoas , quem sabe o que contêm”, alertou Sherif.

Funcionários da saúde denunciam que os falsos médicos geram confusão e desconfiança, o que prejudica as verdadeiras campanhas de saúde pública como a de erradicação da poliomielite.

Muitas vezes, as autoridades egípcias se veem envolvidas em um jogo de gato e rato com milhares de “bruxos”, cuja prática médica, baseada na superstição, atrai pacientes desesperados, de baixa renda e com problemas físicos e psicológicos. Esses autodenominados médicos e líderes espirituais são especialmente difíceis de deter, segundo os fiscais, porque costumam trabalhar em apartamentos alugados e divulgam sua atividade de boca em boca.

Um funcionário judicial declarou ao jornal pan-árabe Al Arabiya que, apesar das tentativas de processar os bruxos por fraude, a maioria dos casos é encerrada quando estes chegam a um acordo com a vítima. “Há quase um bruxo por habitante”, concluiu. Envolverde/IPS