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Egito mostra seus músculos no Nilo

Cerca de 85 milhões de egípcios dependem do Nilo para atender suas necessidades de água. Foto: Cam McGrath/IPS
Cerca de 85 milhões de egípcios dependem do Nilo para atender suas necessidades de água. Foto: Cam McGrath/IPS

 

Cairo, Egito, 24/3/2014 – Quando o então presidente egípcio Mohammad Morsi declarou, em junho de 2013, que “todas as opções” estavam sobre a mesa, incluindo a intervenção militar, caso a Etiópia continuasse construindo represas no rio Nilo, muitos minimizaram suas declarações. Contudo, especialistas acreditam que o Cairo fala seriamente quando ameaça defender o histórico recurso hídrico, e alertam que não se deve descartar um ataque militar egípcio se a Etiópia realizar a construção do que se considera a maior represa hidrelétrica da África.

As relações entre Egito e Etiópia ficaram tensas desde que Adis Abeba iniciou, em 2011, a construção da Grande Represa do Renascimento, no valor de US$ 4,2 bilhões. O Cairo teme que a represa, que entraria em operações em 2017, reduza o caudal do Nilo, do qual dependem 85 milhões de egípcios para atender quase todas suas necessidades hídricas. Funcionários do Ministério da Agricultura disseram que o Egito perderá entre 20% e 30% de sua parte da água do rio e quase um terço da eletricidade gerada por sua Represa Alta de Asuan.

A Etiópia insiste que a Grande Represa do Renascimento e seu reservatório de 74 bilhões de metros cúbicos na cabeceira do Nilo Azul não afetarão o Egito. Adis Abeba espera que o projeto, que vai gerar seis mil megawatts, lhe permitirá ser energeticamente autossuficiente e tirar grande parte dos etíopes da pobreza. “O Egito considera a água do Nilo como um assunto de segurança nacional”, disse à IPS o analista estratégico Ahmed Abdel Halim. “Para a Etiópia, a nova represa é uma fonte de orgulho nacional e é essencial para seu futuro econômico”, acrescentou.

A questão se agravou desde que o governo etíope começou a desviar parte da água do rio, em maio de 2013. Alguns parlamentares egípcios propuseram enviar uma força comando ou apoiar rebeldes locais para que sabotem o projeto. A televisão estatal da Etiópia respondeu, no mês passado, com uma ampla cobertura da visita ao lugar por parte de altos comandantes do exército, que expressaram sua disposição de “pagar o preço” de defender o projeto hidrelétrico.

Citando tratados da era colonial, o Egito argumenta ter direito a não menos do que dois terços da água do Nilo e poder de veto sobre qualquer projeto em seu curso superior, tanto construção de represas como irrigação. Um acordo delineado pela Grã-Bretanha em 1929, emendado em 1959, divide as águas do rio entre Egito e Sudão, sem mesmo consultar os países onde nasce o rio.

O tratado concede ao Egito 55,5 bilhões de metros cúbicos do fluxo anual médio do rio, estimado em 84 bilhões de metros cúbicos, enquanto o Sudão recebe 18,5 bilhões. Outros 10 bilhões se perdem na evaporação do lago Nasser, criado para a construção da represa de Asuã nos anos 1970. Os outros nove países banhados pelo rio não têm direitos sobre ele.

Embora essas disposições pareçam ser muito injustas para os Estados rio acima, analistas dizem que estes têm outras fontes de água alternativas nas montanhas orientais da África, ao contrário dos desérticos Egito e Sudão, que dependem exclusivamente do Nilo para cobrir suas necessidades hídricas.

“Um motivo para o alto nível de ansiedade é que ninguém sabe realmente como esta represa vai afetar a parte da água que cabe ao Egito”, apontou Richard Tutwiler, especialista em manejo de recursos hídricos na Universidade Norte-Americana do Cairo. “O Egito é totalmente dependente do Nilo. Sem ele, não há Egito”, destacou à IPS.

A preocupação do Cairo parece estar justificada quando se considera que seu acesso à água é de apenas 660 metros cúbicos por habitante, entre os menores do mundo. Além disso, se prevê que sua população duplique nos próximos 50 anos, o que significará maior pressão sobre os já escassos recursos. Mas as nações rio acima também têm crescentes populações às quais devem garantir acesso a água, e usar o Nilo para sustentar sua agricultura é muito tentador para eles.

O desejo de conseguir uma distribuição mais igual do Nilo levou à aprovação, em 2010, do Acordo de Entebe, que substitui as antigas cotas e inclui uma cláusula que permite toda atividade rio acima desde que não haja um impacto “significativo” em toda segurança hídrica de outras nações da bacia do Nilo. Cinco países água acima (Etiópia, Quênia, Uganda, Tanzânia e Ruanda) assinaram esse acordo nesse ano. Burundi o fez em 2011.

O Egito rejeitou o novo tratado, mas após décadas de esgrimir sua influência política para deter qualquer projeto hídrico de seus empobrecidos vizinhos agora está em uma posição incômoda de ver evaporar seu domínio sobre as aulas do Nilo. “A ação da Etiópia não tem precedentes. Nunca antes um país rio acima havia construído unilateralmente uma represa sem aprovação dos países rio abaixo”, destacou à IPS o analista Ayman Shabaana, do Instituto para Estudos da África, com sede no Cairo. “Se outros países de águas acima fizerem o mesmo, o Egito sofrerá uma séria emergência hídrica”, alertou.

Para tranquilizar seus vizinhos, a Etiópia destaca que a represa é um projeto hidrelétrico, não de irrigação. Mas a represa é parte de um plano muito mais amplo, no qual se poderiam construir pelo menos mais três. O Cairo afirma que os planos etíopes são “provocadores”. O Egito apelou a organismos internacionais para obrigar a Etiópia a parar a construção da represa até que se possa avaliar o impacto rio abaixo. E, enquanto os funcionários do governo esperam uma solução diplomática, os militares garantem estar preparados para usar a força, se necessário. Envolverde/IPS