Egito perde parte da sua história em confrontos

.

Atualizado em 21/12/2011 às 09:12, por Ana Maria.

Voluntário coloca livros danificados para secar no jardim do Instituto Foto: Reprodução/The Guardian

Acadêmicos egípcios e voluntários lutam para salvar milhares de manuscritos raros destruídos em incêndio no Instituto do Egito

Voluntários em jalecos brancos, luvas cirúrgicas e máscaras na parte de trás de uma picape ao longo das margens do Rio Nilo, no Cairo, remexiam pilhas de raros manuscritos de 200 anos que eram um pouco mais que restos de carvão.

Os voluntários, que iam desde acadêmicos a cidadãos estarrecidos, passaram os últimos dois dias tentando salvar o que resta de alguns dos 192 mil livros, jornais e manuscritos, que se tornaram escombros nos últimos ataques violentos no Egito.

O Instituto do Egito, um centro de pesquisas criado por Napoleão Bonaparte durante a invasão francesa no final do Século 18, pegou fogo durante os confrontos entre manifestantes e militares egípcios no final de semana. Ele abrigava um tesouro em escritos, especialmente os manuscritos em 24 volumes Description de l’Egypte, que começaram durante a ocupação francesa de 1798 a 1801. Eles incluem 20 anos de observações de mais de 150 acadêmicos franceses e cientistas, e continham uma das descrições mais abrangentes dos monumentos egípcios, sua civilização antiga e vida contemporânea na época. Estão agora queimados sem chances de reparação.

Seu antigo abrigo, o prédio de dois andares do instituto histórico próximo à Praça Tahir, está agora correndo risco de desmoronar depois que o telhado cedeu. “O incêndio de um prédio tão rico significa que uma grande parte da história egípcia acabou”, disse Mohammed al-Sharbouni, diretor do Instituto, no final de semana.

Al-Sharbouni disse que a maior parte do conteúdo foi destruído pelo fogo, que durou mais de 12 horas no sábado. Bombeiros inundaram o prédio com água, aumentando o estrago. Durante os confrontos do dia anterior, partes do Parlamento e o escritório de uma autoridade dos Transportes pegaram fogo, mas essas chamas foram apagadas rapidamente.

Enfrentamentos continuam

A violência irrompeu no Cairo na sexta-feira, 16, quando forças militares guardando um prédio do governo, próximo ao Instituto, reprimiram uma manifestação pacífica de três semanas para exigir que os generais governantes entregassem o poder a uma autoridade civil. Pelo menos 14 pessoas morreram. Zein Abdel-Hady, que administra a principal biblioteca do país, está liderando os esforços para tentar salvar o que restou dos manuscritos carbonizados. “Isto é o mesmo que queimar livros de Galileu”, disse, se referindo ao cientista italiano cujo trabalho propondo que a Terra girava ao redor do Sol teria sido queimado em um protesto no Século 17.

Abaixo do escritório de Abdel-Hady, dúzias de pessoas vasculharam os montes de restos trazidos da biblioteca. Um homem em jaleco cirúrgico carregou uma pilha de papel queimado nos seus braços cuidadosamente espalhados, como se estivesse embalando um bebê. A equipe de resgate usou jornais para cobrir alguns livros parcialmente queimados. Máquinas grandes embalaram a vácuo papel delicado.

Pelo menos 16 carregamentos de caminhão com cerca de 50 mil manuscritos, alguns irreparavelmente danificados, foram deslocados das calçadas do lado de fora da embaixada norte-americana e da American University do Cairo, ambos perto do Instituto queimado, para a biblioteca principal, disse Abdel-Hady. Ele disse à Associated Press que não há como saber o que foi perdido para sempre no momento, mas o material vale dezenas de milhões de dólares. “Não dormi por dois dias e chorei muito ontem. Eu não gosto de ver um livro queimado”, disse ele. “O Egito todo está chorando.”

Ele disse que existem quatro outras cópias manuscritas do Descrição do Egito. A obra francesa também foi digitalizada e está disponível online. Pode ter existido um mapa do Egito e Etiópia, datado de 1753, que foi destruído pelo fogo. No entanto, há outra cópia original do mapa na Biblioteca Nacional do Egito, disse ele. O Instituto danificado também abrigava cartas do Século 16 e manuscritos que foram amarrados e arquivados como livros.

No momento, o inventário mais acessível para o que estava abrigado no Instituto está em um livro mantido na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, de acordo com William Kopycki, um diretor da biblioteca. Ele disse que a obra do Instituto era essencial para pesquisadores de história egípcia, estudos árabes e egiptologia. Uma fileira dupla de manifestantes cercou o prédio na segunda-feira, 19.

Em uma coletiva de imprensa também na segunda-feira, um general do conselho militar governante disse que uma investigação estava sendo feita para descobrir quem pôs fogo no prédio. A televisão estatal levou ao ar imagens de homens à paisana queimando o prédio e dançando ao redor do fogo na tarde de sábado. Manifestantes também se aproveitaram do fogo, usando o terreno do Instituto para arremessar bombas e pedras em soldados no topo dos prédios próximos.

Um coronel militar, ajudando nos esforços de resgate na biblioteca, disse que cerca de dez soldados foram designados para ajudar os voluntários. O voluntário Ahmed el-Bindari disse que os militares têm sua cota de responsabilidade por usar o telhado como uma posição para atacar protestantes antes de o fogo irromper. “Quando o governo quer proteger algo, eles protegem. Tente atingir os prédios do ministério do Interior ou da Defesa. Você não vai conseguir”, disse el-Bindari.

* Publicado originalmente no jornal The Guardian e retirado do site Opinião e Notícia.


    Leia também: