Secunderabad, Índia, 29/5/2014 – As eleições nacionais da Índia, realizadas em nove turnos entre 7 de abril e 12 de maio, são consideradas o maior exercício eleitoral do mundo. O espetáculo de poder presenciar 814 milhões de cidadãos que compareceram aos 935 mil colégios eleitorais para escolher entre 1.600 partidos políticos foi, sem dúvida, emocionante.
Mas os resultados anunciados no dia 16 deste mês foram um choque desagradável para os que admiram a tradição política laica arraigada nesse país do sul da Ásia. O Partido Bharatiya Janata (BJP) ganhou a maioria absoluta das cadeiras no parlamento, com 282 das 543 em jogo, graças às aspirações da próspera classe média urbana e com o apoio generoso do pujante setor empresarial.
O controvertido líder do partido promotor do nacionalismo hindu, Narendra Modi, desde o dia 26 é o 15º primeiro-ministro do país, desde a independência em 1947. Ainda mais preocupante, dizem alguns, foi que a Aliança Nacional Democrática (NDA), a coalizão eleitoral encabeçada pelo BJP, conquistou 336 cadeiras, mais de três quintos dos postos na Lok Sabha, a câmara baixa do parlamento.
O outrora invencível Partido do Congresso, que governou o país nos dois últimos períodos consecutivos de governo, se reduziu à sua mínima expressão, com apenas 44 cadeiras, um quinto de sua presença na legislatura anterior. O resultado eleitoral foi recebido com uma tempestade midiática. Para os especialistas conservadores, o BJP conseguiu uma vitória “esmagadora”, mas outros lamentam a consolidação do governo de direita na Índia.
Porém, um olhar mais próximo dos padrões de votação revela uma história de sectarismo persistente na Índia do século 21 e sugere que as eleições nesse país de 1,2 bilhão de habitantes, mais de 120 grupos linguísticos, uma proporção considerável de adivasi ou indígenas e uma complexa hierarquia de castas e subcastas, refletem, no melhor dos casos, uma democracia distorcida.
A minoria muçulmana constitui cerca de 17% da população, mas tem uma representação inferior a 4% no novo parlamento, com apenas 20 das 543 cadeiras. A maioria dos muçulmanos não votou no BJP, por medo de seu histórico, caracterizado por agravar as tensões religiosas no país, e também manteve distância da coalizão NDA. Isso se deu especialmente com os muçulmanos do Estado de Uttar Pradesh, que tem 80 cadeiras na câmara baixa.
Ali, a estratégia eleitoral do BJP apostou no sectarismo e na política de castas. Por exemplo, em Bahraich, norte do Estado, o partido tentou chegar aos dalits (intocáveis) e a outros hindus de castas inferiores com a recordação de um rei hindu do século 11. No caminho, faltou com o respeito em relação ao venerado santo muçulmano Ghazi Saiyyad Salar Masud, que aquele monarca derrotou em combate.
Isso, junto com os terríveis distúrbios de índole religiosa que sacudiram a região de Muzaffarnagar em agosto e setembro – com saldo de cem mortos e 40 mil refugiados – fez com que os muçulmanos evitassem os candidatos do BJP e a NDA. Fantasmas semelhantes afetaram outros Estados. Assim, muitos votaram no BJP porque recordava a violência antimuçulmana de 2002 no Estado de Gujarat, que Modi governou entre 2001 e 2014.
O BJP tampouco teve boa votação nos populosos Estados do sul. Em Tamil Nadu, por exemplo, a Federação Anna Dravida pelo Progresso de Toda Índia (AIADMK), liderada por Jayalalithaa, obteve uma vitória esmagadora e ficou com 37 das 39 cadeiras do Estado, enquanto o BJP ganhou somente uma. Os nacionalistas hindus também foram derrotados no Estado de Kerala e nos dois Estados de Andhra Pradesh, a quinta região em população do país com maioria hindu.
Karnataka é o único Estado do sul onde o BJP avançou consideravelmente. Aqui o conceito de hindutva, uma ideologia centrada na supremacia hindu, se afiançou nos anos 1990, em parte graças a uma campanha dirigida a minar o culto sincrético hindu-muçulmano na gruta-santuário de mil anos de antiguidade do santo sufi Dada Hayat. No passado, os nacionalistas hindus se mobilizaram para instalar no santuário imagens de um deus hindu de casta inferior, e buscaram solapar a posição de seu líder espiritual hereditário. Embora tenha recebido fortes críticas, a campanha deu seus frutos. Nas recentes eleições, o BJP ganhou 17 das 28 cadeiras do Estado.
Grande parte da análise pós-eleitoral se concentrou na vitória esmagadora de Modi, mas poucos indagaram sobre as discrepâncias que há entre o número de cadeiras conquistadas pelo BJP e a proporção de votos efetivamente dados a seu favor.
No que se conhece como o sistema de “maioria relativa” da Índia, as bancadas eleitorais têm maior peso do que os votos, o que resulta em uma grande brecha entre a vitória do BJP e sua popularidade entre a maioria dos eleitores. O partido ficou com 282 das 543 cadeiras do Parlamento, mas a porcentagem de votos obtidos nas urnas foi de apenas 31% da população, o que representa diferença acima de 20%.
Os números dos Estados individualmente são mais alarmantes. Vários informes da imprensa local apontam cerca de seis Estados onde o partido nacionalista hindu ganhou uma quantidade de cadeiras que, em termos percentuais, foi o dobro, ou quase o dobro, da proporção de votos obtidos.
Em Uttar Pradesh, por exemplo, o BJP conseguiu apenas 42,3% dos votos, mas obteve 71 das 80 cadeiras. No Rajastão, 54,9% dos eleitores votaram no partido, mas este ficou com todas as cadeiras do Estado. Em Nova Délhi recebeu 46,4% votos e também ficou com todas as cadeiras. Discrepâncias semelhantes foram registradas nos Estados de Madhya Pradesh e Chattisgarh, no centro do país, bem como em Jharkhand, no leste.
Outro fator de distorção foram os fundos que as empresas colocaram na campanha eleitoral do BJP, a ponto de este ter sido o único partido capaz de publicar grandes anúncios na imprensa, realizar publicidade de longo prazo na internet, inclusive nas redes sociais, e ter acesso quase ilimitado à televisão.
Entretanto, essa campanha na mídia não esteve acompanhada por uma onda de apoio popular para Modi em todo o país. De fato, a maioria dos eleitores votou por partidos contrários à política nacionalista hindu do BJP. Esses fatos devem servir de estímulo para que a AIADMK e outros partidos regionais provavelmente formem um bloco opositor conjunto no novo parlamento. Envolverde/IPS
* Peter Custers é autor de Capital Accumulation and Women’s Labour in Asian Economies (Monthly Review Press, Nova York, 2012).