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“Em Angola, a guerra une e pacifica”

Pepetela acredita que Angola cumpriu metade das ambições da guerra anticolonial. Foto: CC BY-SA 2.5

Luanda, Angola, 20/11/2012 – É surpreendente a tranquilidade com que Angola se dedica à acelerada restauração e construção de sua infraestrutura, uma década depois do fim da guerra civil que durou 27 anos, sem grandes sequelas de grupos armados, ajustes de contas ou violência étnica. Para analisar as chaves deste processo, o correspondente da IPS no Brasil, Mario Osava, entrevistou o escritor Pepetela, nome de guerra de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos.

Militante do governante Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), guerrilheiro da luta pela independência, vice-ministro da Educação nos primeiros sete anos do governo angolano, e professor de sociologia, converteu-se em um dos principais escritores deste país, reconhecido em 1997 com o prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa.

Suas 19 novelas e duas peças teatrais traçam um panorama histórico de Angola, narram a luta contra o domínio colonial português e, ultimamente, seu desencanto pelos rumos do país, um “capitalismo selvagem” que sepultou os ideais socialistas de sua “geração da utopia”, título de um de seus livros de ficção, publicado em 1992.

Pepetela, porém, acredita que os objetivos daquela geração foram cumpridos em 50% e até concede que tenha chegado aos 55%, ao reconhecer conquistas estampadas na Constituição e nas leis, como igualdade de remuneração para homens e mulheres e o mínimo de 40% de representação feminina no parlamento.

IPS: É admirável que a paz tenha se consolidado em tão pouco tempo, sem as sequelas previsíveis de uma guerra tão longa, como o vandalismo e os focos de violência. Como explica essa transição? Que papel tiveram nela o presidente José Eduardo dos Santos e o MPLA?

PEPETELA: É difícil explicar, mas um fator importante foi o cansaço. As pessoas estavam fartas de guerra e violência. Os fatos não foram esquecidos; de vez em quando há alguma discussão acalorada e os do MPLA erram e proclamam que eles ganharam a guerra (a outra parte não pode dizer o mesmo). Mas são momentos de descontrole sem consequências. José Eduardo teve o bom senso de declarar que não havia vencedores nem vencidos. Isto foi importante. E tentou sempre praticar uma política de integração, sobretudo nas Forças Armadas. Apesar de seus defeitos, isso ninguém pode negar. Também havia uma grande capacidade dos angolanos de se solidarizar e sustentar o sentido de comunidade, algo mais difícil de analisar e mais subjetivo.

IPS: Me surpreendeu a interpretação de que a guerra contribuiu para a unidade nacional. O conflito teve essa capacidade de unir os angolanos e superar as divisões étnicas?

P: Foi um elemento importante para reforçar a ideia de nação, algo abstrato, principalmente para os camponeses. Os dois exércitos recrutaram gente em todo o país, misturou todos, obrigando-os a coabitarem e a criarem laços, e os levaram de um lado a outro. Muitos criaram suas famílias fora de suas regiões de origem, com pessoas de outras etnias. Portanto, passaram a perceber que Angola é muito mais do que a aldeia em que haviam nascido. Quase todos aprenderam a falar e ler em português, outro elemento importante de coesão.

IPS: Mas, o que restou do sonho socialista do MPLA, da luta anticolonial e dos primeiros anos de independência?

P: Do sonho socialista, nada. Do programa do MPLA, há um país independente, que às vezes tem um discurso social-democrata, traído na prática diariamente.

IPS: Como definir, então, o sistema econômico angolano? Capitalismo de Estado?

P: Na terminologia antiga, sim. Prefiro chamar de capitalismo selvagem em fase de regulação, e, portanto, em vias de deixar de ser selvagem.

IPS: Em que consistem esses 50% de objetivos de sua “geração da utopia” que considera cumpridos e quais não foram alcançados?

P: São os que mencionei: a independência, a nação e a paz. Falta o resto, uma sociedade mais justa, mais humana.

IPS: Como funciona a educação? Atende à enorme vontade de aprender que testemunhei no interior do país?

P: Cresceu em números e deve continuar crescendo. Mas a qualidade é muito baixa, tanto que assusta. E em todos os níveis. Tampouco está adaptada para servir a uma política de desenvolvimento sustentável.

IPS: Várias pessoas com as quais conversei foram unânimes em dizer que o deslocamento de jovens para a capital se deve ao fato de buscarem melhor ensino secundário e universitário. As escolas do interior não poderiam pelo menos manter os jovens nas províncias?

P: Foram construídas muitas escolas e colégios secundários no interior, nas cidades pequenas. Mas só isso não basta. Devem existir todas as demais estruturas para fazer com que os jovens não sonhem com a cidade grande.

IPS: A presença dominante do português como língua nacional, o papel da música e da televisão, atenuam as divisões étnicas?

P: Na verdade, o português se tornou dominante desde a independência, com risco de causar o desaparecimento das línguas africanas, o que representa a perda de muitas raízes culturais e sociais. Falta harmonizar a necessidade de desenvolver o idioma da unidade e as culturas originárias. Não é fácil, mas as tentativas não passaram do nível burocrático. A música segue as tendências dos Estados Unidos, dos afro-americanos.

IPS: E a literatura, o que surgiu de novo como expressão da identidade angolana?

P: Não me parece que haja uma grande renovação na literatura. Prometeu mais do que cumpriu. Surgem poucos nomes com capacidade de perdurar. Há um problema, o péssimo conhecimento da língua portuguesa escrita, que dificulta o surgimento de jovens talentos. Podem ter capacidade narrativa, mas se não dominam a língua fica difícil expressarem seu talento natural.

IPS: A literatura terá em Angola a importância que teve na formação de identidades de nações mais “velhas”, como Portugal ou Brasil, ou será sufocada pelos meios audiovisuais?

P: No começo, a literatura teve um grande prestígio, e os escritores sempre eram consultados pelos meios de comunicação diante de qualquer fato, uma espécie de “médicos da alma”. Mas, deixaram de sê-lo. Hoje tem muito mais audiência quem aparece na televisão, ainda que para apresentar um programa sobre o amor entre os hipopótamos.

IPS: Alguns de seus livros das duas últimas décadas (A geração da utopia, Jaime Bunda, Os predadores) mostram uma profunda decepção com os rumos políticos de Angola, com a corrupção e o abandono dos valores da luta de libertação. Mas a nação que está sendo construída atualmente ainda vale a pena?

P: Sempre há aspectos positivos: o fato de ter um regime que, apesar de seus erros, é orgulhosamente independente; esta reconstrução das vias de comunicação, embora se baseie no petróleo; o reassentamento das populações que estavam em acampamentos de refugiados e em países vizinhos; a paz que se alcançou. Tudo isso, apesar das falhas e dos retrocessos, são sinais inegáveis de que o país tem pernas para andar. Devemos nos preocupar essencialmente com a formação dos jovens, com exigência. Envolverde/IPS