Não faria sentido ser pessimista, otimista, visionário – a gravidade do momento não comporta. Também seria insensato não sentir profunda inquietação com os rumos do País, diante do inconformismo manifestado nas ruas. Mas como transformar o desejo social em realidade, por que caminhos?
Não há dúvida quanto aos desejos de “reforma política” e de proibição de financiamentos de empresas a campanhas eleitorais, de “combate à corrupção”, de maior proteção às camadas sociais de menor renda – todos eles evidenciados com clareza nas ruas de todo o País. Mas desse ponto em diante estamos ante enormes interrogações.
Pode-se começar pela reforma política: qual será? Que se propõe, fora a defesa – por cientistas da área e por uns poucos políticos – do voto distrital, para aproximar o candidato dos eleitores em cada município, cada bairro? Será esse o desejo da sociedade, que até aqui não se evidencia com clareza? Ainda que seja, quem proporá a “reforma política”? Os atuais partidos? As bancadas no Congresso, todos sob ataques? Quem quer mudar a realidade política brasileira, caracterizada na maior parte pela troca de favores entre candidatos e votantes, pelo progresso material de eleitos e eleitores?
No terreno do combate à corrupção – em que tem havido alguns avanços, graças principalmente ao Ministério Público – também será muito difícil daqui por diante, dada a evidência de um sistema consolidado de troca de favores, principalmente entre grandes empreiteiras, administradores públicos, governantes, legisladores. Que se propõe? Com que instrumentos legislativos e operacionais? E que acontecerá – com que consequências – no mundo empresarial, já atolado nas evidências apuradas e divulgadas?
Também na área do trabalho e da renda a equação é complicadíssima. Vai-se esbarrar na distribuição da renda no País e na legislação que a circunda, na resistência dos que se hoje se beneficiam do “sistema”, no intrincado que é a legislação trabalhista (e os vários fóruns que a cercam). Sem falar que o chamado “equilíbrio fiscal” poderá ser chamuscado no embate entre beneficiários e pagadores com as eventuais mudanças – e tudo com fortes repercussões políticas e eleitorais. E sem falar que eventuais propostas terão de envolver os partidos, inclusive os que hoje têm maiores fatias no bolo.
Na verdade, tudo teria de partir de uma nova estratégia nacional que definisse linhas mestras capazes de indicar rumos para o que se deseja mudar. Mas como fazer se hoje, em termos de “estratégia”, só se considera fundamental o chamado “crescimento do produto interno bruto”, o PIB, sem considerar que nesse conceito não se discutem, além do crescimento econômico, muitas das mais importantes variáveis sociais, principalmente as questões relacionadas com a renda e sua concentração, o desemprego, a falta de equidade com as mulheres, questões fundamentais como educação, saúde, saneamento, etc.?
Convém lembrar que o Brasil continua a ser apontado pela ONU e outras organizações como um dos países com maior concentração da renda; que ainda temos, incluídos os beneficiários do Bolsa Família e os que nem renda têm, cerca de 50 milhões de pessoas no limite da pobreza ou abaixo dele. Não se considera que para mudar esse panorama será decisiva nossa relação com o mundo, onde a renda continua a concentrar-se em poucos países e poucas pessoas; ou que as nações ricas continuam a consumir 80% dos recursos atuais, embora tenham pouco mais de 20% da população total, – e controlam os preços para mais se beneficiarem.
Como trataremos esse panorama nas novas caminhadas , lembrando ainda que são cada vez mais insistentes as análises de cientistas políticos segundo os quais a “crise global” está em forte aceleração – nem a economia chinesa tem escapado a certos recuos? Pretendemos continuar retornando à condição de exportadores de produtos primários, com preços declinantes – ainda uma vez para benefício dos “grandes” do mundo -, e por isso nos tornando deficitários no comércio exterior, com graves implicações internas?
Já passou há muito da hora de uma estratégia que coloque no centro e no início os fatores que mais poderiam beneficiar-nos: a nossa rica biodiversidade, a possibilidade de matriz energética “limpa” e renovável, a relativa abundância de recursos hídricos (que vai sendo atingida por questões como as do desmatamento, do mau uso, do desperdício, etc.). Continuamos aferrados ao sonho de fazermos do petróleo um componente decisivo na balança comercial – deslembrando que a “crise do clima” questiona radicalmente as emissões de poluentes derivadas de combustíveis fósseis; esquecendo que isso já levou a uma queda brutal no preço do petróleo – e coloca também um ponto de interrogação na questão do pré-sal.
Em lugar dessas prioridades, o governo desmantela, na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, o quadro técnico que coordenava “o maior estudo já feito sobre adaptação às mudanças climáticas” (Amazônia.or.br, 15/3). Mesmo sabendo (16/3) que mudanças climáticas poderão deixar mais de 400 mil pessoas no País expostas a enchentes fluviais até 2030, segundo estudo do World Resources Institute. E na hora em que o Acre se encontrava debaixo da maior enchente da História e regiões pouco mais a norte enfrentavam seca terrível, da mesma forma que o Semiárido. O Brasil é o 11.º país mais ameaçado pelo clima.
Tudo isso tem de ser posto na mesa. Mas quem o fará, se hoje a mobilização é feita por redes sociais, sem conexão, sem integração? Grandes instituições nacionais – CNBB e demais igrejas, organizações de advogados, cientistas e outras categorias – precisam trabalhar em conjunto. Para que se chegue pelo menos a uma primeira pauta que, em discussões posteriores, nos aproxime dos grandes temas mobilizadores e de propostas abrangentes – enquanto isso ainda é possível.
* Washington Novaes é jornalista.
** Publicado originalmente no site O Estado de S. Paulo.