Kirkuk, Iraque, 5/8/2013 – Duas equipes rivais tentam encontrar a azeitona sob um dos 11 copos em cima de uma bandeja, um jogo tradicional que se pratica somente durante o mês sagrado muçulmano do Ramadã. Porém, nesta cidade iraquiana, esse jogo é todo um desafio à morte. “Atravessamos nossos veículos no final da rua para evitar que sejam estacionados carros-bomba. Também há policiais à paisana entre nós”, conta Kaukar, dono de um café em Sorja, bairro do norte de Kirkuk, onde esta noite há cerca de 50 pessoas, após a interrupção do jejum diário.
As precauções dos jogadores de “sin-u-serf” (bandeja e copo, em curdo) têm a força da realidade. No dia 12 de julho, um atentado suicida contra um local semelhante nesta cidade matou 38 pessoas e, segundo a base de dados Iraq Body Count, esse mês foi o mais sangrento em todo o Iraque neste ano, com quase mil vítimas fatais. Disputada por árabes e curdos, Kirkuk permanece parada em um limbo legal entre Bagdá e Erbil, a capital administrativa da Região Autônoma Curda do Iraque, enquanto ocorrem constantes ataques suicidas e assassinatos coletivos.
Não é por acaso que uma das cidades hoje mais castigadas pela violência no Iraque esteja sobre uma das maiores reservas de petróleo do Oriente Médio. “Claro que tenho medo, mas minhas opções passam por não sair de casa ou emigrar. E não quero abandonar Kirkuk”, disse Wasta, um dos jogadores. Os demais presentes concordam com a cabeça. E a ameaça está ainda maior durante o Ramadã, que este ano vai de 9 de julho a 8 deste mês.
Os contínuos cortes de luz, junto com temperaturas diurnas que beiram 50 graus, fazem com que os iraquianos saiam à rua em massa após o “iftar”, a ceia que quebra o jejum. Cafés e bazares, mesquitas e praças lotadas são alvos fáceis para ataques terroristas. E, como se fosse pouco, muitos dos que os cometem acreditam que qualquer ato de violência renderá menos dívida espiritual se acontecer durante o mês santo dos muçulmanos.
“O que importa? Ninguém no mundo sabe quando chegará sua hora, afirmou Abu Ahmed, após encontrar a azeitona na terceira tentativa. Oito pontos para o contrário. Enquanto isso, as xícaras de chá e os copos de suco de amora se enfileiram entre aqueles que são meros expectadores, como Abdul Kadir Jiand. “Após a retirada dos americanos (forças militares dos Estados Unidos) em dezembro de 2011, Kirkuk se converteu em um reduto tanto da Al Qaeda como dos leais a Saddam Hussein”, explicou Jiand, que é o líder local da coalizão Goran, uma agrupação política que busca romper o bipartidarismo imperante na Região Autônoma Curda do Iraque.
Jiand destaca a “luta entre partidos políticos apoiados por forças estrangeiras” aponta para o Irã atrás da coalizão xiita no poder em Bagdá e para as potências do Golfo apoiando os sunitas. “Os atentados suicidas são a assinatura da Al Qaeda, mas também estão os IED (Improvised Explosive Device ou dispositivo explosivo improvisado), explosões de estradas, assassinatos coletivos, estes últimos podem vir de qualquer parte”, assegurou o líder político.
Em declarações à IPS, Jabat Ali Ahmed, comandante de polícia de Kirkuk, também vê a mão da Al Qaeda atrás dos casos de violência. Este chefe curdo das forças de segurança local disse que os leais ao desaparecido Saddam Hussein se agrupam em Kirkuk em torno do Jaish Rajal al-Tariqa al-Naqshbandia. Este grupo insurgente reivindica atentados desde a execução do deposto líder iraquiano, em dezembro de 2006.
“A crise política no Iraque e a guerra na vizinha Síria estão convertendo Kirkuk na meca do jihadistas (combatentes da “guerra santa” islâmica) chegados de todas as partes que se unem aos baazistas locais”, disse o oficial se referindo aos membros do Partido Baaz de Saddam Hussein. E garante não se sentir “muito otimista” quanto à segurança da cidade no curto prazo. A sua, afirma, é uma solução “à moda israelense”. “Estamos construindo uma vala ao redor da cidade para evitar os ataques, mas o que realmente funcionaria seria Kirkuk passar definitivamente para a administração curda e que fosse construído um muro ao seu redor, como o de Gaza”.
De volta ao café de Haukar, ninguém acredita que a vala funcione, provavelmente porque são pouquíssimos os que pensam que a violência tenha uma origem exclusivamente árabe. “A oposição e o governo estão por trás de tudo isso, tanto o de Bagdá, quanto o de Erbil”, opinou um morador de Kirkuk que disse se chamar Mohammad.
As razões para isso são óbvias: “Desestabilizar a cidade é a única forma de evitar que esta seja controlada por uma facção rival, por isso ninguém aqui tem as mãos limpas”, acrescentou este curdo que trabalhou na clandestinidade durante o regime de Saddam Hussein, mas que renunciou a colaborar com a nova administração curda pela “corrupção e pelas manobras obscuras” que viu nela.
Sua tese corrobora a experiência de Farid (nome fictício), um jovem local que renunciou à sua carreira de jornalista quando seu colega e amigo Soran Mama Hama foi morto a tiros, em julho de 2008. Em seu último artigo, Hama denunciava uma rede de prostituição em Kirkuk e dava nomes de policiais, agentes de segurança e executivos locais implicados. “Ele e eu costumávamos trabalhar juntos. Eu desisti após receber ameaças do Partido Democrata do Curdistão, dominante entre os curdos do Iraque, mas ele seguiu com sua tarefa”, contou Farid.
Passada a meia-noite, Haukar começa a recolher bandejas e copos, conforme os clientes vão saindo. Aqueles que circulam para o bairro de Arafa, noroeste da cidade, buscarão rotas alternativas ao congestionamento de carros que bloqueava a avenida principal de Sorja. Abu Bakr, taxista local, desliga o motor do veículo e acende um cigarro, com resignação. “Pode ser qualquer coisa, desde um suspeito detido ou um controle de rotina da polícia, até um carro-bomba”, explicou este morador da cidade, magro, com cerca de 60 anos. “O pior de tudo é que em Kirkuk nunca se sabe quem será o responsável por você não voltar nunca mais para casa”, ressaltou Bakr. Envolverde/IPS