Toda a vez que trato da questão da desigualdade social e do preconceito que os negros e negras sofrem no Brasil (herança cotidianamente reafirmada de um 13 de maio de 1888 que significou mais uma mudança na metodologia de exploração da força de trabalho do que uma abolição de fato, pois não garantiu as bases para a autonomia real dos ex-escravos e seus descendentes) sou linchado pelos comentaristas. Até porque, como todos sabemos, o brasileiro não é racista. Nem pedófilo. Muito menos machista. Nem… Bem, deixa pra lá.
No entanto, tenho recebido várias mensagens por e-mail falando deste post, publicado em 20 de novembro de 2010, pedindo que fosse publicado de novo a fim de provocar o debate. Uma surpreendente situação para quem está acostumado a ser acariciado com palavras doces de tolerantes leitores. Então, segue ele de novo:
No 20 de novembro, quando se rememora a morte de Zumbi dos Palmares, é celebrado o Dia da Consciência Negra em várias cidades do país. Um momento de reflexão e de resistência sobre os frutos da escravidão, de um 13 de maio incompleto, que se fazem sentir no cotidiano. Dia que deveria ser aproveitado por todos aqueles que têm seus direitos fundamentais rasgados para uma análise mais profunda do que têm feito para sair da condição de gado. Para isso, seis cenas, daquilo que há de melhor em nós.
Cena 1 – Lugares comuns
Tinha que ser preto mesmo!… Bandido bom é bandido morto… Baiano quando não faz na entrada faz na saída… Mulher no volante, perigo constante… Sabe quando pobre toma laranjada? Quando rola briga na feira.
Cena 2 – Conversando no trânsito
– Amor, fecha rápido o vidro que tá vindo um escurinho mal encarado.
– Aquilo é um cigano? Mantém o vidro fechado.
– Olha, meu filho não é preconceituoso, não. Ele até tem amigos gays.
– Tá vendo? É por isso que um tipo como esse vai continuar sendo lixeiro o resto da vida.
– Viu aquela luz? É um terreiro de macumba. Logo aqui na nossa rua! Mas o João Vítor vai dar um jeito nisso, ele conhece uma pessoa na subprefeitura que vai tirar essa gente daí.
Cena 3 – No salão de beleza
– Eu adoro o Brasil porque é um país onde não existe racismo como nos Estados Unidos. Aqui, brancos, negros e índios vivem em harmonia. Todos com as mesmas oportunidades e desfrutando dos mesmos direitos. O que? Se eu deixaria minha filha casar-se com um negro? Claro! Se ela conhecesse um, poderia sem sombra de dúvida.
Cena 4 – Na redação do vestibular
– Os sem-terra são todos delinquentes que querem roubar o que os outros conquistaram com muito suor.
– Os índios são pessoas indolentes. Erra o governo ao mantê-los naquele estado de selvageria.
– Tortura é um método válido de interrogatório.
Cena 5 – Enquanto isso, entre os amigos da classe média…
– Uma puta! Alguém pega o extintor para jogar nessas vadias.
– Um índio! Alguém pega gasolina para a gente atear fogos nesses vagabundos.
– Um mendigo! Alguém pega um pau para a gente dar um cacete nesses sujos.
– Umas bichas! Alguém pega uma lâmpaga fluorescente para bater nessas aberrações.
Cena 6 – Em um bar qualquer
– Vê se me entende que eu vou explicar uma vez só. A política de cotas é perigosa e ruim para os próprios negros, pois passarão a se sentir discriminados na sociedade – fato que não ocorre hoje. Além disso, com as cotas, estará ameaçado o princípio de que todos são iguais perante a lei, o que temos conseguido cumprir, apesar das adversidades.
Como já disse aqui uma vez, no Brasil, tem gente que não entende a razão do Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos ter que possuir mais de 500 metas.
Porque a nossa idiotice não tem limites.
* Publicado originalmente no Blog do Sakamoto.