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Entrada da Venezuela no Mercosul causa dúvidas e divergências

Buenos Aires, Argentina, 4/7/2012 – A incorporação da Venezuela ao Mercosul justo quando o Paraguai era suspenso criou diferenças entre altos funcionários e dúvidas no futuro da arquitetura legal do bloco. A inesperada resolução de permitir a entrada da Venezuela, na cúpula do dia 29 em Mendoza, na Argentina, carece do aval do Paraguai, suspenso nessa mesma reunião e cujo parlamento não havia ratificado a plena adesão venezuelana, como exige o Tratado de Assunção, constitutivo do bloco.

No Mercosul “já não resta nenhuma norma importante que não seja violada”, disse o vice-presidente do Uruguai, Danilo Astori. Foto: CC BY 2.5

A reação mais dura foi expressa ontem pelo vice-presidente uruguaio, Danio Astori, para quem constitui “uma agressão institucional muito importante para o Mercosul. É uma ferida institucional muito importante, talvez a mais grave dos 21 anos do bloco”.

O que aconteceu em Mendoza é “ir ao coração do Tratado de Assunção e ignorar uma de suas normas mais importantes, pela qual o ingresso de um membro pleno deve ser aprovado por todos os membros plenos já existentes”, disse Astori em declarações publicadas pelo jornal uruguaio El Observador. A partir de agora, “pode acontecer qualquer coisa” no Mercosul, porque “já não resta nenhuma norma importante que não seja violada”, ressaltou.

Enquanto a crise corre dentro do governo uruguaio, cujo chanceler também expressou objeções à forma de entrada da Venezuela, o professor de relações internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Tullo Vigevani, considera que “a questão é controversa e abre uma interrogação”.

O Mercosul, integrado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, havia aceito a entrada da Venezuela como membro pleno em uma reunião presidencial de 2006. Mas essa decisão deveria ser ratificada pelos parlamentos de cada país, ação que nunca conseguiu votos suficientes no Senado paraguaio.

Com a crise institucional no Paraguai, que culminou no dia 22 de junho com a destituição sumária do presidente Fernando Lugo, os mandatários de Argentina, Brasil e Uruguai propuseram suspender o Paraguai, pela violação da cláusula democrática do bloco, e, simultaneamente, aceitar a entrada formal da Venezuela. A decisão tem as assinaturas das presidentes Cristina Fernández, da Argentina e Dilma Rousseff, do Brasil, e do presidente uruguaio, José Mujica.

A suspensão do Paraguai acabará quando for restabelecida a ordem democrática no próximo ano, depois da realização de eleições gerais e da posse de um novo governo. O que acontecerá, então, quando esse país fundador do Mercosul se vir diante de um fato consumado durante sua ausência e sem aval de seu Poder Legislativo?

Para Vigevani, “se no futuro o parlamento paraguaio não ratificar a incorporação venezuelana haverá um novo problema”, e esse país “poderia sair definitivamente do bloco”. No “quadro atual, a perspectiva é a da não reincorporação do Paraguai. Mas, pode haver mudanças já que o isolamento político desse país terá consequências de médio e longo prazos e suas autoridades podem querer negociar”, acrescentou.

A União de Nações Sul-Americanas (Unasul) também decidiu suspender o Paraguai pela remoção do presidente em um julgamento político que não respeitou o devido processo. Contudo, a unanimidade quanto ao ocorrido nesse país não é tão sólida quanto à incorporação da Venezuela. Três dias depois, o chanceler uruguaio, Luis Almagro, expressou dúvidas sobre a legalidade da medida e descreveu um polêmico processo de tomada de decisão na cúpula.

“No contexto negociador que tínhamos no dia 28 de junho, fomos especialmente contrários à entrada da Venezuela nestas circunstâncias”, disse Almagro se referindo à reunião dos chanceleres antes do encontro presidencial. No entanto, “tudo acabou resolvido em uma reunião a portas fechada dos presidentes”, acrescentou durante o programa de rádio uruguaio Em Perspectiva.

Líderes sul-americanos presenteiam o governo venezuelano com uma pintura do retrato do presidente Hugo Chávez, durante encontro do Mercosul, em Mendoza. Foto: Juan Mabromata/AFP

A decisão de incorporar o novo sócio foi uma iniciativa da presidente Dilma, afirmou Almagro. Em sua opinião, “a última palavra não foi dita”, e acrescentou que aguardaria os informes do departamento jurídico de seu Ministério. Imediatamente, Buenos Aires e Brasília responderam.

A chancelaria argentina assegurou que a decisão dos presidentes “foi unânime”, adotada “a sós”, após ouvirem as posições dos chanceleres e de assessores jurídicos dos três países, e que a análise destes também foi “unânime” quanto à entrada da Venezuela “cumprir estritamente” as normas do bloco.

O assessor presidencial brasileiro em política externa, Marco Aurélio Garcia, afirmou que a ideia de somar a Venezuela a partir de 31 de julho “foi proposta pelo presidente Mujica”, o que foi desmentido pouco depois em Montevidéu. “Não pressionamos nenhum país porque não é o estilo da presidente Dilma Rousseff fazer pressão. Foi uma decisão unânime que refletiu o consenso político”, ressaltou Garcia.

Para o advogado Santiago Deluca, ex-secretário do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul, “do ponto de vista jurídico não está totalmente claro o alcance da suspensão de direitos do Paraguai como para incorporar a Venezuela”. Tampouco se especificou se a incorporação “fica sujeita a condições futuras. Mas, o direito sempre sucede os fatos”, acrescentou, e “qualquer solução” é possível no futuro se houver vontade das partes, disse à IPS.

Mais além da legalidade, “é a legitimidade desta espécie de intercâmbio” o que gera dúvidas, disse à IPS o professor de estudos internacionais da Universidade Central da Venezuela, Fidel Canelón. “Isto de sai você para eu entrar trará ruído nas relações regionais” porque “se percebe como um castigo ao Paraguai imposto por Brasil e Argentina”, analisou o acadêmico.

“Mesmo se este caso tem apoio das elites políticas e econômicas nos países sócios, pode alimentar forças dentro do Paraguai a atuarem contra o Mercosul, alimentando a instabilidade do grupo”, alertou Canelón. E deu com exemplo um risco que já se percebe: a evocação desde Assunção de episódios como a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), na qual Argentina, Brasil e Uruguai enfrentaram o Paraguai. “Outra leitura é que no bloco os grandes se impõem novamente sobre os pequenos”, afirmou.

Esta interpretação “deixa o gosto ruim de que as presidentes de Argentina e Brasil possam ter agido aceleradamente para favorecer a entrada da Venezuela, em razão dos grandes negócios que Caracas abriu para empresas” desses dois países, concluiu Canelón. Envolverde/IPS

* Com as colaborações de Mario Osava (Rio de Janeiro) e Humberto Márquez (Caracas).