Especialistas debatem desigualdades na saúde e como atacar o problema

O programa Brasil sem Miséria, lançado recentemente pela presidente Dilma Rousseff, pretende acabar com a extrema pobreza no país. Na área da saúde, uma das ações pretende combater o que o governo chama de doenças da extrema pobreza: tuberculose, hanseníase, esquistossomose, malária, helmintíase (causada por vermes parasitários, como a tênia) e tracoma (infecção no olho causada por bactéria). “Além das questões gerais que atingem a população brasileira como um todo, existem doenças que tanto são consequência da pobreza, particularmente da pobreza extrema, como são perpetuadoras da miséria, na medida em que pioram a exclusão social e diminuem a inserção de pessoas no mercado de trabalho”, explica o diretor do Departamento de Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Carlos Maierovitch. Embora avalie que é positiva a iniciativa do governo federal de combater essas doenças, o diretor do Centro de Pesquisa Gonçalo Moniz (CPqGM/Fiocruz Bahia), Mitermayer Galvão dos Reis, acredita que o plano deveria ter incluído outras enfermidades. “Acho que teríamos que ampliar o leque das doenças a serem combatidas e incluir não só as clássicas, como a esquistossomose, mas também a leptospirose. A cada vez que chove em São Paulo surgem mil casos de leptospirose em uma semana”, aponta.

Maierovitch admite que não são apenas essas seis doenças que têm maior prevalência entre os mais pobres, mas aponta que o programa busca contemplar aquelas que impactam mais as populações consideradas extremamente pobres. “A leishmaniose costuma atingir populações mais pobres, a leptospirose também. Mas não dá para ter uma atuação absolutamente ampla e aberta, senão fica impossível concentrar esforços. A ideia é que com a melhoria nas condições de vida, haja também uma queda natural na ocorrência de outras doenças relacionadas à pobreza”, diz. Ele explica que a proposta é que as políticas de transferência de renda, ampliação do acesso a serviços públicos e inserção produtiva – que compõem os três eixos do Brasil sem Miséria – propiciem a melhoria nas condições de vida dos beneficiados.

Entre as medidas que serão implementadas para o combate a essas doenças estão a avaliação da população beneficiada pelos programas Bolsa Família e Saúde na Escola para diagnóstico precoce; ampliação do benefício pago pelo Bolsa Família às famílias com membros que estejam em tratamento para tuberculose e hanseníase e manutenção do benefício por mais seis meses após a cura comprovada; administração de tratamento em massa para esquistossomose e helmintíase para crianças em idade escolar nas áreas de alta prevalência dessas duas doenças; distribuição de mosquiteiros impregnados com inseticida para o controle da malária; e ampliação do diagnóstico e tratamento da malária em áreas remotas a partir da montagem de unidades volantes e integração com a Estratégia Saúde da Família (ESF).

Doenças negligenciadas

Embora o Ministério da Saúde não tenha adotado essa terminologia, as doenças presentes no plano de ação do Brasil sem Miséria fazem parte de um grupo também chamado de doenças negligenciadas, que inclui numerosas outras doenças que afetam populações pobres na América Latina, Ásia e África. Além das que estão listadas nas ações do programa, esse grupo inclui ainda a doença de Chagas, a leishmaniose, a elefantíase e a doença do sono, entre outras. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), doenças negligenciadas são aquelas que, por afetarem populações de baixo poder aquisitivo em países em desenvolvimento, não despertam o interesse da indústria farmacêutica, que não vê nelas uma possibilidade de auferir grandes lucros.

Dados da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) mostram que o setor investiu em todo o mundo US$ 63,2 bilhões em pesquisa e desenvolvimento (P&D) em 2007. No entanto, um estudo intitulado G-Finder, que faz um levantamento sobre o financiamento mundial de inovação para doenças negligenciadas (custeado pela Fundação Bill e Melinda Gates) mostrou que os investimentos nessa área somaram US$ 2,5 bilhões naquele ano. O baixo nível de investimentos em P&D se reflete na quantidade de medicamentos produzidos para as doenças negligenciadas: dos 1.556 novos remédios registrados entre 1975 e 2004, apenas 21 foram desenvolvidos para essas enfermidades, que, de acordo com a OMS, são responsáveis por 12% da carga global de doenças e afetam cerca de um bilhão de pessoas em 149 países.

O papel do Estado

“A indústria farmacêutica age com o cérebro, visando ao lucro. O interesse dela é produzir os antidepressivos, anti-histamínicos, estimulantes sexuais, o que gera recursos. Por isso cabe ao Estado exercer um papel regulador, produzindo aquilo que não interessa à indústria farmacêutica, que são os medicamentos voltados para as doenças que atingem as populações sem poder aquisitivo”, aponta Mitermayer Galvão dos Reis. De fato, segundo o G-Finder, a indústria farmacêutica privada contribuiu com apenas 9% do montante investido em doenças negligenciadas em 2007, o setor público respondeu por cerca de 70% e as organizações sem fins lucrativos, com 21%. O Brasil ficou em sexto no ranking de países que mais investiram dinheiro público em pesquisa e desenvolvimento para doenças negligenciadas, com quase US$ 22 milhões.

De acordo com o diretor do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), a unidade da Fiocruz que produz os medicamentos para malária e tuberculose distribuídos na rede pública, Hayne Felipe da Silva, praticamente 100% dos recursos para pesquisa e desenvolvimento de medicamentos para doenças negligenciadas no Brasil são provenientes do Estado, por meio dos Ministérios da Ciência e Tecnologia e da Saúde. “Não existe como pressionar um ente privado a investir nessas doenças. É preciso buscar mecanismos indutores para a participação da indústria, por meio de subvenções, incentivos fiscais e garantia de aquisição e distribuição. Fora isso, a saída é o próprio poder público produzir, que é o que o Brasil faz”, diz. Segundo ele, hoje o Brasil tem consolidada uma indústria de produção de medicamentos dependente de políticas de transferência de tecnologia. “Nós dominamos a técnica de transformar o princípio ativo em um comprimido, em um xarope, mas o Brasil não detém a tecnologia de produção do insumo farmacêutico ativo. Hoje importamos 80% dos insumos que são transformados em medicamentos. Para se ter uma ideia, importamos princípios ativos da China para produzir medicamentos para malária e tuberculose”, diz.

Segundo Hayne, um dos grandes gargalos existentes para o desenvolvimento de princípios ativos no país é a falta de laboratórios especializados em conduzir ensaios clínicos e testes de toxicidade. “Para desenvolver drogas é preciso partir de um ponto zero, que pode ser um produto de síntese química ou um produto de origem animal ou vegetal, e submeter esse produto aos testes de toxicidade e ensaios clínicos. É aí que se começa a utilizar voluntários humanos para testar a droga. Este é um ponto de gargalo no Brasil, porque nós temos poucos centros capazes de desenvolver esse tipo de estudo”, explica. O diretor afirma que isso foi uma consequência de políticas neoliberais adotadas por sucessivos governos a partir dos anos 1990. “Nessa época, o Brasil apostou na ideia de que o mercado se regularia, se desenvolveria, o que não foi verdade para nós. Atualmente, o Brasil precisa de investimentos tanto em pesquisa quanto na constituição de infraestrutura para pesquisa, com a construção de laboratórios e centros de ensaios clínicos”, aponta.

Perfil epidemiológico: transição incompleta

Nos últimos 50 anos, o Brasil passou por intensas transformações econômicas, sociais, políticas e culturais. A industrialização e a mecanização do campo foram responsáveis por um êxodo rural que mudou radicalmente a maneira como a população se distribui geograficamente, devido a um processo de urbanização acelerado. O crescimento econômico propiciou uma ampliação do acesso da população a serviços básicos de saúde e saneamento básico. Mudaram também os hábitos alimentares, já que as famílias passaram a consumir mais alimentos ricos em gorduras hidrogenadas, açúcares e produtos industrializados. No período, a população passou por um processo de envelhecimento. Os dados foram reunidos no relatório “As Causas Sociais das Iniquidades em Saúde no Brasil”, publicado em 2008 pela Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS).

Tudo isso fez com que houvesse uma mudança no perfil epidemiológico brasileiro. Se, há 50 anos, as principais causas de mortalidade eram as doenças infecciosas, parasitárias, nutricionais e perinatais, atualmente cerca de dois terços dos óbitos ocorridos no país são em decorrência de doenças não transmissíveis, como câncer, doenças cardiovasculares e crônico-degenerativas. “Mas, como tudo no Brasil, as nossas transições sempre são muito desiguais, e fica na ‘rabeira’ o grupo da população mais pobre, que ainda tem doenças que não são vistas nos demais grupos”, diz o coordenador do Centro de Estudos, Políticas e Informação sobre Determinantes Sociais da Saúde (Cepi-DSS/Fiocruz), Alberto Pellegrini Filho. “Temos muita superposição de realidades. São necessárias políticas públicas que levem em conta essa complexidade, essa carga dupla de doenças que afetam grupos da população. Por isso o Brasil sem Miséria é interessante, na medida em que o país tem bolsões de população que estão na extrema pobreza e precisam de uma política focalizada”, opina.

Iniquidades

Pellegrini Filho ressalta, entretanto, que atualmente a separação entre doenças “da pobreza” e doenças “da riqueza” já não faz mais sentido. “Hoje, são as populações de menor renda ou de menor escolaridade as que sofrem mais de todos os tipos de doenças. O que temos hoje claramente é que, qualquer que seja a doença, há um escalonamento da sua distribuição na população de acordo com a estratificação social, com maior predominância nas classes de baixa renda. Então, nosso grande problema de saúde é combater essas iniquidades na saúde, que são as diferenças injustas e evitáveis, causadas por determinantes sociais”, explica.

Mitermayer vai pelo mesmo caminho. “Eu prefiro a expressão ‘doenças de populações negligenciadas’, porque assim são incluídas outras doenças que não são consideradas negligenciadas para os ricos, mas são para os pobres, como o câncer e o diabetes, que são enfermidades cujos tratamentos são conhecidos, mas o diagnóstico e o acesso a esses tratamentos são mais difíceis para os mais pobres”, diz ele, que completa: “populações negligenciadas são as que moram em situações precárias, sem água potável, sem coleta de lixo, em que o sistema educacional não funciona bem e as informações chegam com dificuldade. Este é o caso também das populações que moram em torno da Floresta Amazônica”.

Para o professor de saúde coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Gastão Wagner, o compromisso do governo com o combate às doenças da extrema da pobreza é válido, mas ele faz ressalvas. “É claro que se houvesse uma estrutura democrática, uma distribuição de renda adequada, não teríamos esse problema. Como não está no horizonte que vamos resolver os grandes problemas urbanos e a distribuição de renda a curto prazo, acho que um programa desse, apesar de não atingir os fatores estruturais, é importante”, aponta. No entanto, para Wagner, a prevalência de doenças como a hanseníase ainda hoje entre os brasileiros revela falhas na rede pública de saúde, que precisam ser remediadas.

“Isto mostra uma insuficiência do SUS, particularmente da atenção básica, principalmente nas áreas onde a incidência de hanseníase e tuberculose é alta. Revela que nossa atenção básica tem baixa cobertura e qualidade ruim. Há uma determinação que é social, mas exige uma ação do SUS também. Tem que combinar ações do setor saúde com ações de caráter cultural, social e habitacional”, analisa o professor. Ele defende o que chama de “pacto pela consolidação” do SUS. “Cada governo estadual ou nacional escolhe algumas prioridades porque não tem recurso para implantar o SUS como um todo. O Ministério da Saúde, os Estados e os Municípios precisam lutar para dobrar os recursos da saúde pública. Hoje são 3,5% do PIB, mas precisamos de 7% para trabalhar decentemente, para ter carreiras, estender a atenção básica, integrar os hospitais à rede do SUS. É preciso cobrar do governo um pacto pelo SUS, pela integralidade, pela rede regional, não apenas programas focais”, critica.

Ele aponta ainda que o problema é que muitas vezes a luta pelo fortalecimento do setor se interpõe aos interesses do capital. “A saúde pública, quando funciona bem, põe um limite à lucratividade do capital, seja na indústria do alimento, na indústria automobilística, na regulamentação do espaço urbano. Então não é uma harmonia completa: pelo contrário, é conflito com o mercado, com o interesse de produção, com políticas econômicas hegemônicas. Mas como os lobbies empresariais têm mais força do que o lobby sanitarista, em geral a lógica de mercado tem prevalecido”, explica.

* Publicado originalmente no site Plurale.