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Esperando um teto quatro anos depois do terremoto no Haiti

A haitiana Mimose Gérard, de 57 anos, lava roupas e coleta garrafas de plástico para sobreviver. Quatro anos depois do terremoto, ainda reside em um acampamento. Foto: Milo Milfort/IPS
A haitiana Mimose Gérard, de 57 anos, lava roupas e coleta garrafas de plástico para sobreviver. Quatro anos depois do terremoto, ainda reside em um acampamento. Foto: Milo Milfort/IPS

 

Carrefour, Haiti, 22/1/2014 – Mimose Gérard se senta em sua barraca no acampamento Gaston Margron, perto da capital do Haiti, rodeada por grandes sacos cheios de garrafas de plástico. Ganha apenas alguns centavos por cada uma, mas é melhor do que nada. “Vivo no acampamento desde 13 de janeiro de 2010, quando me instalei em uma barraca. Tem sido uma existência dolorosa”, contou à IPS. “Sou apenas uma pessoa comum neste terreno. Não tenho nenhum lugar para ir”, acrescentou.

A coleta de garrafas para reciclar é o meio de sustento de pelo menos uma dezena de moradores desse acampamento que cerca de 800 famílias chamam de lar, instalado em Carrefour, na fronteira sul de Porto Príncipe. Quatro anos depois do terremoto de 12 de janeiro de 2010, ainda há cerca de 300 acampamentos dispersos pela região da capital, e em uma nova grande favela sobre as ladeiras desérticas da periferia da cidade.

Gérard tem 57 anos e 11 filhos. Também se dedica a lavar roupa para ganhar alguns centavos a mais. Suas mãos estão ásperas e rachadas. “As condições são desumanas, mas não temos para onde ir. Os que tiveram ajuda de suas famílias partiram. Mas não conto com isso, por isso vou ficando”, contou a mulher. Ela acrescentou que os habitantes do lugar também são obrigados a consumir água sem tratar, em um país assediado por uma epidemia de cólera.

“Não temos latrina. É aqui que as pessoas jogam seu saco de material fecal”, disse Gérard, apontando para uma área de mato onde os habitantes do lugar esvaziam os pequenos sacos plásticos usados como “latrinas portáteis” durante a noite, quando é perigoso sair das barracas. Além dos ladrões, os residentes têm de lidar com a polícia e com homens armados que trabalham para os latifundiários.

“A polícia tenta nos forçar a abandonar o acampamento”, explicou Gérard. Os policiais aparecem e disparam para cima, para assustar os habitantes do lugar. “O próprio dono veio três vezes”, contou. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), os residentes de aproximadamente um terço dos cerca de 300 acampamentos correm risco de serem desalojados.

No dia 11 deste mês, um dia antes do quarto aniversário do terremoto, um inferno desabou sobre uma centena de barracas e choças de um acampamento em Delmas, perto do centro de Porto Príncipe. Uma mulher de 38 anos e três crianças pequenas morreram queimadas e dezenas ficaram feridas. Além de levar algumas vítimas para o hospital público e entregar colchões, as autoridades municipais e nacionais não fizeram declarações, nem investigaram o incêndio, que muitos suspeitam ter sido intencional. A terra é propriedade de uma gráfica haitiana.

“Todos os abrigos improvisados das 108 famílias que viviam no acampamento ficaram destruídos pelas chamas, junto com seus pertences pessoais”, declarou a Anistia Internacional no dia 17. Segundo Sanon Renel, líder da Frente de Reflexão e Ação Pela Moradia, a voracidade do fogo e a falta de resposta oficial não fazem prever nada de bom.

“O setor privado parece que está intensificando seus despejos”, afirmou Renel. “Percebem que o governo praticamente apoia suas ações e por isso podem fazer o que querem. É repugnante ver como as autoridades tratam as pessoas pelo simples fato de serem pobres. Não as consideram seres humanos. Penso que as veem como animais”, lamentou.

Bastaram 35 segundos. Em 12 de janeiro de 2010 um terremoto de sete graus de magnitude no Haiti matou quase 25 mil pessoas, destruiu 500 mil edificações – deixando 1,5 milhão sem casas – e desatou a destruição generalizada. O custo estimado dos danos só no setor habitacional chegou quase a US$ 2,5 bilhões.

Quatro anos depois, aproximadamente 200 mil pessoas como Gérard ainda estão perdias nos acampamentos. Foram construídas apenas 7.515 novas moradias permanentes, enquanto foram reparadas 27 mil e cerca de 55 mil famílias receberam um único pagamento de cerca de US$ 500 para deixarem os acampamentos. Mas agora essas famílias “enfrentam outra crise habitacional, pois seu subsídio de moradia se esgota”, afirma um estudo do Instituto para a Justiça e a Democracia no Haiti, com sede em Washington.

Um plano do governo dos Estados Unidos para construir 15 mil novas moradias reduziu seus objetivos em cerca de 80%, segundo o Centro de Pesquisa em Economia e Política. Agora, o plano é construir apenas 2.500. Embora a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) tenha construído cerca de 900 casas no Haiti, decidiu não continuar com essa atividade.

Em geral, dos US$ 6,43 bilhões desembolsados por doadores bilaterais e multilaterais para o Haiti entre 2010 e 2012, apenas 9% passaram pelo governo haitiano. O restante foi diretamente para empreiteiros estrangeiros. “Realmente é um negócio rentável para empreiteiros norte-americanos ganharem dinheiro com esse desastre”, afirmou à IPS Dan Beeton, do Centro de Pesquisa em Economia e Política. “Essa foi uma oportunidade de transformar um desastre em algo que poderia beneficiar os haitianos, reconstruindo seu próprio país, mas simplesmente passaram por cima”, acrescentou.

Marie Ilien, de 45 anos, também vive no acampamento de Gaston Margron. Lava garrafas para se manter com dois de seus quatro filhos que vivem com ela. “Recolho embalagens na rua e consigo entre 20 e 25 gourdes” (US$ 0,46 a US$ 0,57). A cada manhã, quando acordamos, recolhemos sacos de fezes e vamos jogá-los em um buraco. O mau cheiro nos impede de cozinhar”, contou.

Como Gérarde, Ilien lamenta a falta de água potável. “Quando o acampamento foi construído tínhamos água para beber, mas agora não. A água que bebemos não é boa”, pontuou. Não surpreende que ela e outros residentes do acampamento tenham medo de contrair alguma das várias doenças originadas na má qualidade da água que afetam o Haiti, particularmente o cólera.

Estudos feitos por várias autoridades, incluídos os Centros para o Controle e a Prevenção de Enfermidades dos Estados Unidos, afirmam que a bactéria entrou em território haitiano com os soldados nepaleses que integram a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah), de 9.500 efetivos.

Introduzida no país em outubro de 2010, até agora essa doença infectou quase 700 mil pessoas, matando cerca de 8.500. Segundo os Centros para o Controle de Enfermidades, ainda hoje duas pessoas morrem por dia vítimas do cólera. Embora agências da ONU considerem que se trate de uma epidemia e de uma crise humanitária, até agora têm rejeitado os pedidos de compensação. “O cólera e a moradia são ignorados, mas seguem juntos”, pontuou Beeton. “Não há água limpa, por isso a doença se propaga. A não erradicação do cólera também acontece por falta de vontade política”, ressaltou.

A ONU tem 18 entidades, incluída a Minustah, operando atualmente no Haiti. Elas colaboram com cerca de 43 grandes organizações não governamentais, mais Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, o governo e centenas de agências menores. Porém, o financiamento reduzido afetou a ajuda humanitária, embora o orçamento da Minustah continue sendo alto, de quase US$ 557 milhões para o período de julho de 2013 a junho de 2014.

“A Minustah é um desperdício de dinheiro, porque no Haiti não há nenhum conflito armado e, por outro lado, o dinheiro poderia ser gasto para acabar com a epidemia de cólera iniciada por seus soldados”, opinou Beeton.

ONU Habitat afirma que, já antes do terremoto, o Haiti tinha um imenso déficit de moradias adequadas, e que muitos já viviam em áreas faveladas. “Claramente, estamos fora da fase de emergência e permitiremos que o país cuide de si mesmo, mas isso não poderá avançar a menos que haja meios”, declarou à IPS um porta-voz dessa agência. Envolverde/IPS

* Com colaboração de Lorraine Farquharson na Organização das Nações Unidas (ONU).