A menina me disse que eu teria de esquecer o que sabia para poder ver aquilo que eu não via… Que menina? Aquela sobre quem escrevi (veja aqui). Caminhávamos juntos, ela me mostrava e me explicava a sua escola, na Vila das Aves, em Portugal. Eu teria de esquecer para poder ver… Quem lhe ensinara isso, essa estranha pedagogia da desaprendizagem? Não podia ter sido Roland Barthes…
Barthes, ao sentir a velhice chegando, disse esta coisa surpreendente: que chegara a sua hora suprema, a hora do esquecimento, tempo de desaprender os saberes que havia aprendido. Posso imaginar o espanto que essa declaração deve ter provocado no erudito público acadêmico presente a sua aula.
Esquecer, desaprender: são o oposto daquilo que as escolas e professores pedem aos alunos. Os professores perguntam e os alunos, se tiverem memória boa, respondem e tiram boas notas… Esquecer é o contrário: perder, abrir mão, deixar ir. E, na lógica banal da razão do cotidiano, esquecimento é sempre empobrecimento. Barthes aponta na direção oposta. Teria ficado senil?
Quem responde é o poeta T. S. Eliot, num curtíssimo-cortante aforismo: “Num país de fugitivos, aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo”.
Barthes caminha na direção contrária. Ele nos conduz a um outro mundo. Suspeito que ele tenha aprendido do Taoismo. Pois é isto que está lá dito, no poema de número 48 do Tao-Te-Ching: “Na busca do conhecimento a cada dia se soma algo. Na busca do Caminho da Vida a cada dia se diminui algo”.
Esquecer é diminuir; desaprender é diminuir. Barthes não está sozinho em sua caminhada na direção contrária. Lichtenberg tinha uma ideia parecida: “Atualmente procura-se divulgar a sabedoria por toda a parte: quem sabe se daqui a poucos séculos não haverá universidades destinadas a restabelecer a antiga ignorância?”.
Alberto Caeiro é de opinião semelhante. “O essencial é saber ver – Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!), Isso exige um estudo profundo, Uma aprendizagem de desaprender…” “Procuro despir-me do que aprendi, Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, Desembrulhar-me e ser eu…”
Barthes se referiu ao esquecimento como “a força da força viva”. Por quê? Ele mesmo responde, mostrando que o esquecimento é um processo pelo qual o corpo “raspa” de sua pele as sedimentações operadas pelo passado, mortas, da mesma forma como o navegador raspa a craca marisca que grudou no casco do seu barco. Raspada a craca, o barco rejuvenesce.
Encantam-me os eucaliptos velhos, suas cascas duras, rugosas, grossas, escuras, rachadas. Repentinamente elas se soltam: debaixo delas surge um eucalipto rejuvenescido, casca verde-creme, lisa, sobre ela a mão desliza com prazer. Nós, humanos, para renascer, temos de esquecer – abandonar a casca velha para que a nova apareça. As cascas vazias das cigarras presas aos troncos das árvores são um passado subterrâneo que teve de ser abandonado para que o ser voante nascesse. Esse é o caminho da educação…
Mas a menina me fez pensar outros pensamentos que eu nunca tinha pensado. Eu os guardo para depois…
* Rubem Alves é educador, escritor, psicanalista e professor emérito da Unicamp – [email protected].
** Publicado originalmente no Portal Aprendiz.