Arquivo

Estados Unidos caminham sobre gelo fino no Oriente Médio

O secretário de Estado norte-americano, John Kerry, dialoga com a imprensa após uma reunião de ministros das Relações Exteriores do Grupo de Amigos da Síria, dia 22 deste mês, em Londres. Foto: Ministério das Relações Exteriores e da Commonwealth/cc by 2.0
O secretário de Estado norte-americano, John Kerry, dialoga com a imprensa após uma reunião de ministros das Relações Exteriores do Grupo de Amigos da Síria, dia 22 deste mês, em Londres. Foto: Ministério das Relações Exteriores e da Commonwealth/cc by 2.0

Washington, Estados Unidos, 24/10/2013 – Novas e inesperadas tensões nas relações dos Estados Unidos com Arábia Saudita e Turquia, seus mais estreitos aliados no Oriente Médio, expõem os desafios do governo de Barack Obama para navegar nas águas cada vez mais turbulentas dessa região. Neoconservadores, membros do opositor Partido Republicano e outros falcões (ala mais belicista de Washington) atribuem essa situação à tendência de Obama para ignorar a região e sua reticência em usar o poder militar para defender agressivamente os interesses de Washington.

Outros consideram que as novas forças que surgiram com a invasão do Iraque em 2003 e a Primavera Árabe transformaram a região e estão desafiando o controle dos Estados Unidos. “Os norte-americanos já não têm a capacidade de marcar tendências no Oriente Médio”, admitiu Chas Freeman Jr., diplomata aposentado que foi embaixador na Arábia Saudita durante a Guerra do Golfo de 1991.

Contudo, “as ilusões de onipotência imperial são difíceis de matar”, pontuou. “Os atores regionais estão redobrando esforços para convocar o apoio de potências externas”, disse Freeman no dia 22, na Conferência de Políticos Árabes Norte-Americanos, realizada em Washington. “Isso poderia gerar surpreendentes realinhamentos geopolíticos”, ressaltou.

A Casa Branca recebeu uma bofetada na semana passada, quando a Arábia Saudita se recusou a sentar-se pela primeira vez como membro não permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), argumentando o fracasso desse órgão para resolver o conflito palestino-israelense e a atual crise na Síria. O impacto foi maior no dia 22, quando o The Wall Street Journal informou em sua primeira página que diplomatas europeus haviam se reunido em Yeda com o chefe da inteligência saudita, Bandar Bin Sultan al Saud, ex-embaixador de seu país em Washington.

Nesse encontro Bandar teria dito claramente que o boicote ao Conselho de Segurança era “uma resposta para os Estados Unidos, não para a ONU”. Além disso, segundo fontes do jornal, Bandar revelou que Riad não só considera reduzir sua cooperação com Washington no treinamento e fornecimento de armas aos rebeldes sírios, como também explora relações militares com outras potências que sirvam mais aos interesses sauditas.

Consultado a respeito em Londres, onde participava da reunião do grupo Amigos da Síria, o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, disse que manteve uma série de reuniões com o chanceler saudita, Saud al Faisal. Nesses encontros, afirmou Kerry, chegaram a vários acordos sobre a Síria e outros temas. Também garantiu ter “grande confiança” de que os dois países “continuarão sendo os importantes e estreitos amigos que temos sido”.

Embora as palavras de Bandar pareçam ser apenas uma advertência, é fácil notar que Washington e Riad se afastam cada vez mais nesses e em outros assuntos. A Casa Branca não gosta do apoio de Riad à repressão de movimentos opositores no Bahrein e Egito, nem sua lentidão para agir contra os sauditas que apoiam financeiramente grupos filiados à rede radical islâmica Al Qaeda na Síria e no Iraque.

Por sua vez, a Arábia Saudita está preocupada por uma possível distensão entre Estados Unidos e Irã, pois teme que Teerã recupere a primazia que gozava no Oriente Médio, com apoio de Washington, antes da Revolução Islâmica de 1979. Enquanto isso, na frente turca, o governo de Obama ficou desconcertado por uma série de acontecimentos que muito provavelmente complicarão seus vínculos com o único aliado de maioria muçulmana na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), se é que já não o fez.

David Ignatius, colunista do jornal The Washington Post, informou na semana passada que o chefe da inteligência turca revelara a Teerã a identidade de dez iranianos que espionavam para Israel. Assim, Ancara, pôs fim a uma longa história de colaboração em inteligência com o governo israelense, que começou a sair dos trilhos após a ofensiva do Estado judeu contra Gaza em 2008 e 2009. A imprensa turca informou esta semana que Washington cancelou o envio de aviões não tripulados Predator a Ancara, em represália por essa colaboração com o Irã.

Embora o governo do primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, tenha negado o informe de Ignatius, crescem as suspeitas de que este esteja atualmente mais perto de Teerã do que de Tel Aviv. Isto marcaria uma mudança na histórica rivalidade entre Turquia e Irã e confirmaria o fracasso dos esforços de Obama para voltar a estreitar os laços entre turcos e israelenses.

Como se não bastasse, surpreendentemente a Turquia anunciou, no mês passado, que escolheu uma companhia chinesa, e não suas competidoras norte-americanas e europeias, para construir um novo sistema de defesa antimíssil. A firma está sujeita a sanções de Washington por ter vendido equipamento militar nada menos do que para o Irã. Além disso, o sistema chinês seria incompatível com o equipamento utilizado pelos membros da Otan. Inclusive os simpatizantes de Erdogan e de seu Partido da Justiça e do Desenvolvimento reconhecem que a aliança entre Turquia e Estados Unidos está com sérios problemas.

Considerando o histórico da Turquia, como pode a administração Obama continuar dizendo que é um ‘sócio modelo’ ou sequer considerá-la uma aliada?”, escreveu Steven Cook, especialista em assuntos turcos para o independente Council on Foreign Relations. “Cruzamos a linha do desacordo razoável e chegamos a um ponto tal que a Turquia está trabalhando clara e ativamente para perturbar os objetivos norte-americanos no Oriente Médio”, pontuou.

A mutabilidade que caracteriza hoje a região e as dificuldades dos Estados Unidos para navegar por ela ficam inclusive melhor ilustradas com as cada vez mais complexas relações que têm, por sua vez, os governos da Arábia Saudita e da Turquia. Unidos, ao menos até agora, em demanda para que Bashar al Assad abandone o poder na Síria, discordam no caso do Egito.

Enquanto Riad ajuda o regime militar egípcio com milhares de milhões de dólares, Erdogan exige a volta do deposto presidente Mohammad Morsi e o fim da repressão contra a Irmandade Muçulmana, movimento transnacional considerado uma ameaça mortal pelas monarquias da região. E, enquanto Raid e seus aliados no Golfo estão cada vez mais preocupados pela distensão entre Estados Unidos e Irã, a Turquia parece ter a esperança de poder reatar plenamente seus laços comerciais com esse país vizinho.

O Oriente Médio ingressa em uma era de multipolaridade, na qual a maioria das mudanças é impulsionada por forças internas. “O simples mundo das rivalidades coloniais das superpotências se desfez há tempos”, enfatizou Freeman. “O conceito de que está conosco ou contra nós perdeu todo significado no Oriente Médio atual. Nenhum governo da região está hoje em dia disposto a confiar seu futuro a estrangeiros, muito menos a uma única potência estrangeira”, ressaltou. Envolverde/IPS

* O blog de Jim Lobe sobre política externa dos Estados Unidos pode ser lido em Lobelog.com.