Montevidéu, Uruguai, 14/8/2013 – Para a brasileira Carmen Barroso, a América Latina e o Caribe devem ter um papel crucial na concepção da “cidadania sexual”, uma arquitetura de direitos e garantias em matéria de população que esta região ajudou a construir desde o nascimento da Organização das Nações Unidas (ONU).
A liderança latino-americana na promoção de direitos para as mulheres “é muito antiga” e se mantém, afirmou em entrevista à IPS a doutora em psicologia Carmen Barroso, diretora regional da Federação Internacional de Planejamento Familiar para a Região do Hemisfério Ocidental.
Barroso foi uma protagonista central do processo de negociação da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994. Para ela, todas as inovações e a criatividade nesta matéria procedem da sociedade civil, na qual hoje se destacam os movimentos juvenis.
Por isso não acredita em retrocessos na I Reunião da Conferência Regional sobre População e Desenvolvimento da América Latina e do Caribe, que começou no dia 12 e termina amanhã, em Montevidéu, no Uruguai. Neste encontro a região examina seus progressos e fracassos e se põe de acordo em uma posição comum para levar à Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas.
IPS: Espera retrocessos nesta primeira conferência regional?
CARMEN BARROSO: Não creio que haja retrocessos. A região avançou muito desde a década de 1990. Os governos estão conscientes de que se trata de um tema de desenvolvimento. Aqui não há ninguém que tenha forças para voltar atrás. Por outro lado, há pelo menos 12 delegações governamentais que vieram integradas com a sociedade civil, uma forma de transmitir que os governos querem sentir que representam diferentes vozes de seus países. A sociedade civil é fundamental. A agenda de direitos veio dela. Os governos não têm tempo para criar neste terreno. Quanto atuam de forma criativa, é por influência da sociedade civil. Além disso, prevejo um impacto global. Esta região sempre foi vanguardista. Foi um ator destacado em promover os direitos das mulheres no processo da Carta da Organização das Nações Unidas e em criar, em 1946, a Comissão da Condição Jurídica e Social da Mulher. Isso é muito antigo. Agora, a região está mudando, tem muitos países de renda média, e o Brasil entrando no grupo Brics (com Rússia, Índia, China e África do Sul). Quer dizer que o mundo nos olha de outra maneira.
IPS: Quais temas podem impedir o consenso?
CB: O perigo que vejo é que as referências ao aborto permanecerem iguais ao Programa de Ação do Cairo: que é um problema de saúde pública, que quando é permitido deve ser seguro e que se deve agir em consonância com as legislações nacionais. Este será um ponto de muita discussão. A realidade regional mudou. O Uruguai despenalizou o aborto, a capital do México também, o mesmo fizeram Guiana e Porto Rico. A Colômbia flexibilizou as normas e o Brasil ampliou as causas para interromper a gravidez. Em Cuba o aborto é legal desde a década de 1960. É importante que isto se reflita na posição regional, mas não será fácil. Outro aspecto é a reclamação por educação sexual integral, em particular para os jovens. Ainda há essa terrível bobagem de acreditar que a educação sexual promove “o pecado”, a iniciação sexual precoce. As pesquisas mostram que não é assim e até pode atrasar o início da vida sexual, pois faz com que as jovens se sintam empoderadas para se negarem se não estiverem convencidas. Também se fala em incluir de maneira explícita o direito à identidade de gênero e o respeito à diversidade sexual. Mas os direitos sexuais e reprodutivos são mais amplos. As mulheres também têm direito de não serem molestadas na rua, não sofrerem assédio no trabalho. Muitos desses aspectos são esquecidos. Em síntese, estamos criando o que podemos chamar de “cidadania sexual”, para a qual é fundamental a educação sexual integral.
IPS: Como evoluiu a sociedade civil que acompanha este processo nas duas últimas décadas?
CB: O mais importante é ver os jovens. Aqui temos numerosas delegações de jovens muito ativos, que também se expressam e se organizam como tais. Quando comecei nestes temas era jovem, claro, mas não me definia como tal. O que me definia era ser mulher e feminista. Isto é novo.
IPS: Já que falamos de juventude, um problema que não mostra progressos, mas retrocessos, é a gravidez na adolescência.
CB: É verdade. Um estudo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) mostra que na metade dos países, sobre os quais há dados, os números se mantêm iguais e que, na outra metade, há aumento. Contudo, há algumas novidades: muitas adolescentes que têm seu primeiro filho já não têm o segundo, como ocorria antes.
IPS: Qual o motivo disso?
CB: Isso se deve ao fato de somente terem acesso a métodos anticoncepcionais e informação ao entrarem no sistema de saúde pela gravidez e pelo parto.
IPS: Parece que os adolescentes de hoje gozam de maior liberdade sexual do que há 20 anos, mas não têm instrumentos para manejá-la.
CB: Nem todos. Há diferenças de classe. No um quinto mais alto da população, de maior poder aquisitivo, não há gravidez na adolescência. Estas se concentram no quinto mais pobre.
IPS: Qual a solução?
CB: Os governos teriam que começar por cumprir o que prometeram. Em 2008, os ministros da Educação e da Saúde da região se comprometeram em garantir mecanismos de educação sexual integral nas escolas. O que vemos até agora são alguns tímidos passos em uns poucos países. Envolverde/IPS