Uma estética do calor: o Jalapão em agosto

Parque Estadual do Jalapão. Foto: http://pt.wikipedia.org
Parque Estadual do Jalapão. Foto: http://pt.wikipedia.org

“Estética do calor”, esta frase eu li publicada em um belo ensaio fotográfico sobre diversas Unidades de Conservação (UCs) do Estado do Tocantins, de autoria de Zé Paiva, famoso e premiado fotógrafo de natureza, residente no sul do País. O belo livro comprei em Palmas, voltando de uma experiência única e exitosa no Jalapão, acampada quatro noites em uma APA (Área de Proteção Ambiental) contígua ao Parque Estadual do Jalapão. O calor constante e acima de 35 graus, todos os dias, só é aliviado por um vento igualmente quente, mas que traz alívio, sim senhor. Fica-se rezando por ele quando as árvores repentinamente param de farfalhar ou chiar. A estética, primeiramente é dada pela vegetação extensa e monótona ao mesmo tempo, embora possa parecer contraditório dizer isso ou até mesmo incorreto do ponto de vista fisio- ou fito-geográfico. A vastidão inesperada traz a sensação da monotonia, que logo se dissipa quando se começa realmente a enxergar a diversidade biológica e paisagística que se estende à nossa frente, ora com características fortes de Cerrado, ora com as matas secas e arbustivas típicas da Caatinga. O nome correto desta transição é ecótono e o Parque do Jalapão concentra este tipo de ocorrência nos seus 158.885 hectares. Um elo absolutamente estratégico entre as próprias áreas protegidas do Jalapão e da Estação Ecológica de Serra Geral, além do Parque das Nascentes do Parnaíba.

Mas este depoimento sobre estar e viver intensamente as experiências de cheiro, cor e sabor no Jalapão não pretende ser um compêndio ainda que sucinto sobre a biodiversidade e clima do lugar, nem mesmo sobre como fazer turismo sustentável. Trata-se apenas de um relato emocionado, e ainda recente, fresquinho na memória, das belezas cênicas vistas, das pessoas que encontramos cuja lida inclui a aspereza da vida natural e difícil onde falta tudo: infraestrutura, serviços básicos e onde ainda nascem meninos e meninas à beira da estrada nas mãos de “caminhoneiros que viram parteiros”, pois a lonjura, as distâncias a percorrer desses cantões até a cidadezinha mais próxima às vezes é de dia inteiro. Por isso, talvez, o Jalapão que vimos se assemelhe a um “deserto geográfico”: muita natureza, pouca gente, vilarejos pequenos, isolados, aqui e ali. Cidades mais próximas: Mateiros (1,8 mil habitantes), Ponte alta, alguns milhares mais. Palmas, a capital, uma reprodução aclimatada de Brasília, a 8 horas de viagem de carro em estrada penosa.

Sou ambientalista,  e isso para mim significa abandonar de tempos em tempos os gabinetes onde exerço minhas funções profissionais e ir “aonde o povo está” e onde a natureza mostra toda a sua inteligência ecológica. Gosto de conhecer nossos parques, santuários ecológicos e regiões onde é possível ver ainda a natureza em estado razoavelmente intocado, agreste. Em 2011 reuni um grupo de amigos e fomos à Antártida, dois anos antes fomos ao Butão (Himalaias) e ao Deserto do Sinai (África).

A cada ano planejo conhecer algum lugar deste imenso País, que não cansa de surpreender com a vastidão do território e a diversidade de biomas e culturas. Foi a paixão que adquiri pelo Cerrado, a savana brasileira, que conheci morando em Brasília por quase cinco anos, que me despertou a curiosidade de conhecer o Jalapão.

Visitando regularmente a Chapada dos Veadeiros (GO), nasceu este amor pela paisagem do Cerrado, formado lentamente por um treino que o olhar vai adquirindo em identificar, apreciar, e aos poucos desvendar os detalhes. Ah, o diabo e o prazer moram nos detalhes. As bromélias resilientes, súbitas em flor e beleza nas formações rochosas, as corujinhas buraqueiras tão mimeticamente misturadas com a paisagem, os quero-queros, sempre em par e gritalhões, uma ema arisca e difícil de divisar na paisagem quente, e o céu, sempre o céu azulado de cegar o olho no sol a pino, as noites com incontáveis estrelas, em painel gigante sobre nossas cabeças. E os espaços largos, planos, nos fazem esquecer do quase emparedamento que os prédios das cidades grandes proporcionam.

A estética do calor aqui se chama Cerrado

O Jalapão apresenta singularidades bastante distinguíveis a olho nu no Parque Estadual que fica ao leste do Estado, na divisa do Piauí, Bahia e Maranhão. É um Cerrado diferente, que à primeira vista lembra uma caatinga sempre verde, entremeada por veredas onde se impõe sem a menor dúvida os Buritis, palmácea típica, indicando a umidade que não abandonou o lugar, ainda que agosto e setembro sejam o auge do período seco.

Nosso grupo, só de mulheres, era de cinco. Além de mim, Celina Carpi, empresária e presidente do Movimento Rio como Vamos, Ana Affonso uma carioca apaixonada por Ibitiboca (MG) que lá mantém uma fazenda e fomenta o desenvolvimento local de Lima Duarte, cidade pequena. Márcia Couri, pesquisadora do Museu Nacional interessada em coletar insetos do Jalapão para seus estudos e Leila Mendes, fonoaudióloga conhecida e que encontra em todos os lugares em que vai “uma forma budista de apreciar”. Ela medita olhando para você e acredito que todo o Jalapão meditou com ela, enquanto lá estivemos. Um grupo de mulheres amigas, curiosas, atentas e, naturalmente excitadas com a idéia de acampar no mato e ver de perto uma das mais exuberantes paisagens do Brasil.

A aventura começa em Mateiros onde o aeroporto é literalmente uma clareira em meio a um campo sujo: nome que se dá quando a vegetação de gramíneas rarefeitas ou arbustiva bem baixa é pincelada, aqui e ali, com árvores de pequeno porte. Terra vermelha que subitamente encontra areais e logo nos damos conta que a secura e o calor serão nos parceiros constantes. Passamos pela cidade de Mateiros que parece deserta à hora do almoço. Tomamos um café ralo e doce na pensão da dona Rosa e partimos para um lugar a uma hora dali onde pudemos nos refrescar e lanchar. Cachoeira da Formiga e Fervedouro são duas pequenas amostras do que vamos encontrar. A primeira lembra as quedas de água comuns na Mata Atlântica, a vegetação bem verdinha. Mas o fundo arenoso e a água cristalina já diz que o solo e micro-clima são outros bem diferentes. O Fervedouro, ali próximo, é uma ressurgência de água subterrânea que ao encontrar a densa camada de areia da superfície forma um olho d’água movediço, com temperatura cálida que faz nossos corpos suados flutuar. É bom demais, e ali dá vontade de ficar, não fora alguns filhotes de Sucuri que mergulham na água verde e turva de areia para também se deliciar. Pequeno susto, risadas dos guias e lá vamos nós, nos sentindo “mulherzinhas” para o “acampamento”. Só em retrospecto me lembro que o Fervedouro era cercado por bananeiras. Todo mundo sabe que bananal atrai cobras.

Estrada é gentileza, aquilo é uma trilha larga que abriram entre Mateiros e a região onde o acampamento se instalou. A operadora de turismo sustentável que utilizamos contrata locais bem treinados e nos longos percursos de camionetes que fizemos desde o desembarque, ouvimos suas histórias, engraçadas e às vezes bem tristes como a do Nelson que desistiu de ser caminhoneiro devido à insegurança das estradas e da polícia corrupta – que segundo ele costuma achacar quebrando as lanternas dos caminhões exigindo depois propina para deixar a carga seguir. Muitas queixas ouvimos de “terras sem lei”, sem a presença do Estado com “E” maiúsculo. Também ouvimos crônicas deliciosas sobre a criação do Estado do Tocantins, em 1988 (época da Constituinte) quando Siqueira Campos (político local, várias vezes Governador) fez greve de fome para que o Congresso aprovasse seu pleito. Ouro, índios, escravos, coronéis, quilombolas, as histórias desfiam com cronologias difíceis de memorizar. Mas uma coisa não sai da cabeça: o povo ali se achava esquecido do resto do Brasil até 1988.

Tudo é distante e o corpo vai sacudido, mas feliz, ao encontro do que aqui viemos buscar. O acampamento surpreende pela organização, limpeza e pelas barracas grandes, com o conforto do banheiro individual. Banho coletivo com chuveiros poderosos aquecidos com placa solar. Como viemos do Piauí onde a seca severa a todos aflige pergunto se podemos tomar banho, ao que o guia responde com o sotaque carregado, gostoso, do lugar “Ué, aqui não é Piauí não, aqui tem muita água”.

Verdade, água por todo canto. O acampamento fica às margens do Rio Novo e tudo é pensado de modo a evitar impactos ambientais. Tem horta, composteira, iluminação suave à noite, nada de ar condicionado nem ventilador. As noites são quentes, mas o cansaço acumulado do dia e a felicidade de estar ali traz um sono bom, reparador, logo recompensado pelo café da manhã. Ali toda a equipe cozinha, mas Nelson é o experiente mestre dos bolos de aipim, das massas fritas que lembram o pão de queijo e das tapiocas com manteiga. Tudo fresco, farto, com cara do Brasil.

O Rio Novo é um afluente do Rio do Sono que por sua vez deságua no Tocantins. É um rio que nessa época convida ao banho sem susto e que apresenta corredeiras leves; em outros trechos a coisa muda e aparecem as águas e depressões próprias para o rafting. Escolhemos a prática da canoagem nas corredeiras mais suaves e foi um prazer percorrer vários quilômetros de rio olhando as bordas verdejantes, das matas ciliares bem conservadas. Vimos poucos bichos neste dia, mas os guias contam que um pouco mais além, onde está a Estação Ecológica federal (turismo não é permitido) reside o hábitat dos patos mergulhões.

À tarde vamos às famosas dunas do Jalapão, torcendo para propiciar às nossas máquinas fotográficas um esplendoroso pôr do sol. Duas horas de areal, terra vermelha, veredas, e adentramos o Parque Estadual do Jalapão. Ao fundo, altaneira, a Serra do Espírito Santo, formação rochosa de arenito que erode a olhos vistos e forma as dunas alaranjadas que avistamos sem dificuldade, tal é a cor que contrasta com o resto. Subir as dunas descalços é uma experiência prazerosa. Ao cair da tarde, a areia não está quente e o contato massageia os pés. A vista de cima é de tirar o fôlego, abrindo uma panorâmica que nos permite ver as veredas incontáveis aos nossos pés. A visão da Serra, de um lago azul no meio da paisagem quase desértica e das veredas de Buritis formam um conjunto único que satura nossos olhos de beleza. O coração do Jalapão é ali. Ele pulsa, tudo se move, o vento faz seu trabalho e a resposta geológica é visível.

Nosso grupo acrescido do time de guias e motoristas se espalha na areia. Eles não cansam de contar “causos”, para eles é rotina estar ali. Nós, perplexas e encantadas ficamos mudas, umas andando a torto e à direita, outras simplesmente estateladas na planura da duna. De repente, todos silenciamos, como se um anjo ali tivesse passado e pedido que calássemos. O por do Sol entra em cena. Mesmo com uma nuvem que empana a sua majestade, ficamos gratos e nutridos. O jantar, no acampamento, com os quitutes próprios do Tocantins (muita carne sol, peixe e arroz sirigado), melancias doces, sucos de frutas várias, é animado com as conversas sobre o que vimos e ouvimos. A conclusão é geral, e antes m esmo de prosseguirmos visitando novos lugares: o Jalapão nos transformou. Enriqueceu o nosso vocabulário brasileiro, nos alimentou com novos sabores e novos olhares, nos aqueceu com os sorrisos e as matreirices de Mauro, Nelson, Adélio, Gilcélio e Tiago, nossos anjos da guarda em nosso périplo jalaponês. Todos locais, mostram sem pudor a morenice, a brejeirice dos homens acostumados com água, mato, histórias de onça e calor. Transmitem segurança e mostram ternura com os animais assim como conhecimento das plantas que não cansam de apontar: ipês, ingazeiras, jatobás, cajueiros, anjicos, pau de leite, buritis, lobeiras. Anotei num caderninho nomes de mamíferos, aves, plantas, répteis. As Canindés (araras comuns nesta região) fazem gritaria de manhã. O sol esquenta, tudo se aquieta. “Jesus me abane”: a frase de Mauro, um dos guias, vira mantra para nós. O calor dita o ritmo.

Muita gente sai das cidades e vai em busca de natureza e muitas vezes as comunidades são invisíveis, não fazem parte do cenário que imaginam e registram. Aqui percebemos que sem eles, os locais, não se vê realmente, mas apenas levamos uma coleção de fotografias. A geografia humana é parte indissociável deste lugar e as crianças ariscas, tímidas que hesitam entre a curiosidade e o receio com os forasteiros, aparecem à porta das casinhas simples e nos brindam com sorrisos de encher o coração. Cruzamos com elas no ônibus que as busca para a escola e reparamos que em todas as lonjuras do Jalapão, o programa “Luz para Todos” chegou. Acesso à Internet e serviço de celular não funcionam bem. Os guias mais espertos conhecem lugares onde pega-se o sinal, e é inusitado de repente estar em cima de cumpinzeiro duro, falando precariamente ao celular.

A Cachoeira da Velha, com sua beleza comparável à Foz de Iguaçu (embora menor, está toda no Brasil e não diminui no período de seca) tem história de fantasma e de adrenalina pura. Algumas de nós, mais ousadas e em melhor forma, se aventuram em atravessar os volumosos túneis de água para alcançar a “outra cachoeira”, na parte de trás das pedras. Para os menos propensos a escalar rochas escorregadias, o acesso, por passarelas e mirantes bem cuidados permite o desfrute do visual. Simplesmente espetacular.  Há no entorno praias deliciosas de águas claras, fundo arenoso sem perigo, e pode-se ver cardumes nadando sem medo de nossa proximidade. Pura delícia em meio ao calor escaldante.

Acho que brasileiro nenhum deveria morrer sem conhecer o Jalapão. Eu fui, vi e, vencida me apaixonei.

Nota final

Acesso para quem vai ao Jalapão do sudeste: a partir do aeroporto de Palmas (avião de carreira) ou do campo de pouso de Mateiros (aviões de pequeno porte). Os carros têm que ter tração nas quatro rodas. Aconselha-se fortemente a contratação de guias. Não há incidência forte de mosquitos na seca, e um repelente convencional previne as mordidas de mutuca e muriçocas que abundam à beira dos rios. Roupas leves, água, máquinas para registrar os inesquecíveis momentos e muito bom humor para enfrentar as “quase estradas” é o suficiente para encarar e apreciar o Jalapão.

Saiba mais lendo os seguintes livros: “Cerrado, Ecologia e flora”, Brasília, Embrapa, 2008. “Fitofisionomias do Bioma Cerrado”, B. M. T Walter, UNB, Brasília, 2006. “Tocantins: expedição natureza”, de Zé Paiva, FM Editorial, São Paulo, 2012.

Samyra Crespo é ambientalista, ex-secretária de articulação institucional do MMA e presidenta do JBRJ.

** Publicado originalmente no site Eco21.