Atrajetória dos sistemas de ciclos e da progressão continuada na educação brasileira é, salvo exceções, tão curta quanto malsucedida. Surgiram no Brasil entre os anos 1970 e 1980 em discussões acadêmicas com a preocupação de atualizar o sistema da educação por série (vigente desde o fim do século XVIII), e seriam determinantes para diminuir a desigualdade social e a elitização do ensino. Acabaram tendo força nos anos 1990, mas, na prática, foram vítimas do sucateamento do ensino público e acabaram estigmatizados em campanhas eleitorais como sinônimo de aprovação automática.
O novo secretário da Educação do estado de São Paulo, Herman Voorwald, assumiu em janeiro com a missão, dada pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), de reformular os ciclos da Educação Básica na rede paulista, que não têm correspondido às expectativas. A reportagem de ¬Carta ¬Fundamental procurou o secretário em fevereiro, mas não obteve sucesso. Em comunicado oficial, Voorwald declara que o sistema tradicional de ensino em série não voltará: “(…) um sistema de reorganização já está sendo planejado. Além de permitir uma avaliação individual do aprendizado dos alunos a cada semestre e, a partir dos indicadores obtidos oferecer um modelo de recuperação eficiente quando necessário, o processo permitirá que a aprovação seja baseada no conhecimento adquirido e não em um processo padrão”, diz o comunicado. Ou seja, os ciclos devem continuar. A expectativa é que o governo estadual mude os ciclos de dois para três no Ensino Fundamental. Embora não tenha sido divulgado oficialmente, a expectativa é de que o estudante, que hoje pode ser reprovado na 5ª e 9ª séries, passe a ser avaliado ao fim do 3º, 6º e 9º anos.
Os ciclos e a progressão continuada foram usados na rede estadual de São Paulo e Minas Gerais, mas sofrem críticas constantes por terem se transformado, na prática, em “aprovação automática”, o que empobreceu o debate. Nas últimas eleições para o governo estadual, foi comum ouvir candidatos propagarem querer acabar com a progressão continuada, porque ela seria responsável pelo baixo índice de aprendizado dos alunos.
A prefeitura do Rio de Janeiro aplicou-a para o Ensino Fundamental no ano 2000. No entanto, lá também foi culpada pela má qualidade do ensino. “Nas eleições para prefeito em 2008, tanto Eduardo Paes (PMDB) quanto Fernando Gabeira (PV) criticaram o sistema. Quando eleito, um dos primeiros atos do prefeito Paes foi suspender a progressão e voltar com o sistema seriado”, diz Claudia Fernandes, coordenadora da pós-graduação em educação da Unirio.
Talvez o único local do País onde os ciclos foram adotados e têm uma boa resposta educacional é no ensino municipal de Porto Alegre (RS). “O processo lá foi cuidadoso”, diz Claudia. “A discussão sobre a implementação dos ciclos e da progressão continuada começou nos anos 1980, quando já ocorriam seminários sobre o tema, e durou anos. O impacto dela foi positivo e está em vigor até hoje.”
O governador paulista Geraldo Alckmin, disse em entrevista à Rádio CBN dias após a posse, em janeiro, que a progressão continuada não é o problema da educação paulista. “O aluno que falta é reprovado. Se ele vai à escola, por que não está aprendendo? Aí é avaliação e reforço escolar. Até o terceiro ano nenhuma escola particular reprova, pelo processo de alfabetização. O objetivo da escola não é cultura do fracasso”, disse.
Cultura da meritocracia
O Brasil, como a maior parte do mundo ocidental, desde o século XVIII utiliza o mesmo sistema de séries escolares. A maioria de nós passou por ele: um professor tem a missão de ensinar o conteúdo aos alunos que, espalhados em classes numerosas, são avaliados, geralmente, a cada bimestre. Ao final da série, o aluno que foi bem, passa de ano. O que foi mal, tem de repetir a mesma série no ano seguinte.
“Ela vem da cultura liberal dos séculos XVII e XVIII”, diz Ocimar Munhoz Alavarse, professor da Faculdade de Educação da USP. “É baseado na meritocracia: você estuda e passa de ano. Se não mereceu, repete. Em países em que a escolarização é mais organizada, você acaba tendo faculdade para todo mundo. No Brasil não é assim, então seleciona-se os melhores para o ensino superior. Quem não vai à faculdade¬ vira vítima do fracasso escolar”, conclui.
“Este sistema é incompleto”, relata Mateus Prado, professor de cursinho, especialista em Enem e gestor do Instituto Henfil. “Imagine um aluno que todo bimestre tira nota 8. E agora imagine outro que no começo do ano tirou 2, mas que no fim tirou 5. Quem evoluiu? O segundo caso, claro. Só que o sistema seriado só valoriza o que tira nota 8, que acaba tendo os maiores cuidados do professor. O aluno que vai mal acaba ficando de escanteio. E é justamente ele que precisa de ajuda”, diz.
A grande maioria dos especialistas em educação no País é contra a repetência. “Estudos indicam que um aluno que não passa de ano e que repete todo o processo no ano seguinte acaba tendo tendência maior de repetir de novo. É estatístico”, diz Prado.
Claudia Fernandes entende que o sistema seriado, que ainda tem muito apreço por educadores e dirigentes educacionais, não resolve mais a equação da educação no século XXI. “Dividir o ensino em séries estava de acordo com os conhecimentos em educação que haviam há cem, duzentos anos. Mas hoje conhecemos muito mais. O sistema em ciclos é uma das alternativas que respondem a essas demandas”, diz.
Este sistema prevê uma sensibilidade maior por parte dos professores, uma vez que entende existirem várias formas de inteligência humana – e, portanto, várias formas de se aprender conteúdos diferentes. Tende a dividir o aprendizado em ciclos maiores que um ano – normalmente de dois a quatro – nos quais os professores se utilizem mais do diálogo e discussões com alunos do que com a tradicional via única do professor passando o conteúdo. “Imagine um professor que pretenda montar um grupo de teatro na escola”, sugere Ocimar Munhoz Alavarse. “É quase impossível você conseguir ministrar teoria e técnicas de teatro em apenas um ano, e dar nota para os alunos. Os ciclos permitem isso.”
Mas se o sistema seriado não é o mais completo, por que a progressão continuada não consegue substituí-lo? Uma das respostas está na questão financeira. O custo para manter uma rede seriada é menor. É o que afirma a professora Claudia Fernandes. “A implementação da escola em ciclos não é barata, diferente da seriada. Você tem de ter turmas menores e uma formação continuada do professor. E o professor tem de aprender a acompanhar, a trabalhar em equipe e ficar mais dentro da escola, o que significa mais horas extras.” Sem preparação do professor, a progressão continuada torna-se, na prática, a educação seriada com aprovação automática. Confusão que torna pobre não só a própria discussão, como todo o ensino no País.
*Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.