[media-credit name=”Olga Vlahou” align=”alignright” width=”300″][/media-credit]Mais uma vez um livro didático foi alvo de polêmica. Uma notícia divulgada pelo portal IG, por meio do blog Poder On Line, afirmou: o MEC comprou e distribuiu um livro que “ensina a falar errado”. Em jornais, emissoras de tevê e meios eletrônicos, o livro, seus autores e o próprio MEC foram crucificados. Colunistas renomados esbravejaram. É um livro “criminoso”, atestou Clóvis Rossi, na Folha de S.Paulo. Dora Kramer, no Estadão do dia 17, aproveitou para atacar Lula: “Tal deformação tem origem na plena aceitação do uso impróprio do idioma por parte do ex-presidente Lula, cujos erros de português se tornaram inimputáveis, por supostamente simbolizarem a mobilidade social brasileira”. Poderíamos nos perguntar o que Glorinha Kalil pensa do assunto, mas vamos nos ater aos fatos.

 

O livro em questão é o Por Uma Vida Melhor e faz parte da coleção Viver, Aprender, organizada pela Ação Educativa, uma ONG que há 16 anos promove debates e atua em projetos de melhoria da educação e políticas para a juventude. Foi distribuído para 4.236 escolas e é destinado, frise, para alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) – mais para frente ficará claro o porquê. Seus autores são Heloísa Ramos, Cláudio Bazzoni e Mirella Cleto. Os três, professores de língua portuguesa, autores de livros didáticos e estudiosos do tema variação linguística.

A polêmica midiática partiu da reprodução de trechos como: “Você pode estar se perguntando: ‘Mas eu posso falar os livro?’. Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico”. Reproduzidos assim, descolados de um contexto, parece mesmo que a orientação era mandar às favas a língua portuguesa. Mas não é bem isso. Faltou uma leitura mais atenta, ou, pior, faltou ler a obra. O capítulo em questão, ao menos (clique aqui para ler).

Tanto é que foram repercutidas as mesmas poucas frases, retiradas de um dos 16 capítulos do livro. Embora o título seja autoexplicativo, Escrever é diferente de falar, vale reproduzir a proposta descrita na introdução: “Neste capítulo, vamos exercitar algumas características da linguagem escrita. Além disso, vamos estudar uma variedade da língua portuguesa: a norma culta. Para entender o que ela é e a sua importância, é preciso conhecer alguns conceitos”. Os trechos pescados pela imprensa estavam no tópico A concordância das palavras. Ali, discute-se a existência de variedades do português falado que admitem que o primeiro termo de um grupo nominal indique se a frase é singular ou plural. O exemplo: “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”. Em seguida, reescreve-se a frase na norma culta: “Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados”.

Ou seja, os autores do livro mostram aos alunos do EJA, adultos que já carregam uma bagagem cultural construída pela vivência e por suas experiências educativas, que este modo de falar é correto linguisticamente, por se fazer comunicar, mas não é aceito gramaticalmente. Explica-se: a linguística é uma ciência em busca de conhecimentos sobre a língua. A gramática não é cientifica, é um conjunto de normas. É, portanto, uma parte importante, mas não representa todo o saber da língua.

A confusão está, em parte, no fato de se pretender apartar a teoria linguística do ensino da língua, como se a escola devesse parar no tempo e não deixar entrar nenhum avanço científico relativo à língua materna. “Isto sim é uma irresponsabilidade, um crime”, devolve Cláudio Bazzoni, um dos autores do livro.

Não se fala aqui de uma ciência inventada ontem. Com base em estudos antigos, os linguistas mostram que a língua é um sistema complexo, muito maior do que um conjunto de normas, que muda pela história e é determinada por práticas sociais. Sírio Possenti, professor do departamento de linguística da Unicamp, explica: “Para um linguista, o conceito de certo e errado não tem sentido. Seria como um botânico achar que uma planta está errada. Para ele, a questão é quais são as regras em cada caso”. Posto que as noções de certo e errado têm origem na sociedade, não na estrutura da língua, ele completa: “É certo o que uma comunidade considera certo. E esta avaliação muda historicamente. Um exemplo: a passiva antiga do português se fazia com de: ‘será de mim mui bem servida’. Está na Carta de Caminha. Hoje, se faz com por”.

A sociedade, no caso, os jornalistas – até mais que os normatistas – condenaram um tipo de conteúdo, a variação linguística, que faz parte há mais de quinze anos dos livros didáticos de língua portuguesa disponíveis no mercado, avaliados e aprovados pelo MEC. Estão, portanto, mal informados. Como ressalta o professor da Universidade de Brasília, Marcos Bagno, em artigo publicado no site de Carta Capital: “Nenhum linguista sério, brasileiro ou estrangeiro, jamais disse ou escreveu que os estudantes usuários de variedades linguísticas mais distantes das normas urbanas de prestígio deveriam permanecer ali, fechados em sua comunidade, em sua cultura e em sua língua… Defender o respeito à variedade linguística dos estudantes não significa que não cabe à escola introduzi-los ao mundo da cultura letrada e aos discursos que ela aciona. Cabe à escola ensinar aos alunos o que eles não sabem! Parece óbvio, mas é preciso repetir isso a todo momento”.

Pelo visto, nem tudo que parece é óbvio. Possenti resume bem o imbróglio: “Bastaria que se aceitasse que as línguas não são uniformes, o que é um fato notório, bastaria as pessoas se ouvirem”.  Fica aí a dica para quem, como o jornalista Alexandre Garcia, em comentário irado sobre o livro que “ensina a falar errado”, começou a frase com “Quando eu TAVA na escola”…

* Publicado originalmente no suplemento Carta na Escola, no site da revista Carta Capital.