Srinagar, Índia, 21/12/2011 – Poucos dias depois de seu casamento, em 2008, Imran* foi detido e colocado na prisão central da cidade indiana de Srinagar, acusado de suposto rapto e violação de sua mulher, Shafeen. O processo seguiu apesar de a jovem negar as acusações. Foram seus pais que as fizeram, furiosos porque o casal se uniu contra seus desejos. Desse modo, asseguraram que o jovem passasse dois anos na prisão, até ser libertado sob fiança em 2010.
Na Índia, os casamentos por amor fazem aumentar as mortes por honra, enquanto as famílias da Caxemira recorrem cada vez mais ao uso de falsas acusações de violação para prejudicá-los. Na sessão de setembro da assembleia legislativa do Estado de Jammu e Caxemira – cuja capital é Srinagar –, o governo revelou números sobre a quantidade de violações registradas nos últimos quatro anos.
De todos os distritos da Caxemira administrados pela Índia, em Srinagar o registro de violações foi maior: 120 entre 2006 e 2010. Contudo, das centenas de casos pendentes nos tribunais distritais, os especialistas legais dizem que a maioria não tem evidências suficientes que as apoiem. “A maioria é de casos registrados por pais cujas filhas fugiram, optaram por se casarem por amor ou estão envolvidas em alguma relação amorosa”, explicou à IPS o conselheiro legal Sheikh Mohammad Sultan.
Entretanto, os casos reais de violações, assédios e abusos ficam sem registros no vale, devido ao estigma associado a esses delitos. Imran e Shafeen estavam noivos há vários anos e decidiram desafiar os pais da moça se casando e mudando. Agora faz três anos que se casaram. “Quando os pais de Shafeen ficaram sabendo, apresentaram queixa contra Imran na delegacia local, denunciando-o por sequestro e violação”, disse Irfan Mattoo, o advogado de Imran. A polícia aceitou as acusações e prendeu o casal.
“Quando ambos apresentaram a certidão de casamento, a polícia a rasgou e os pais de Shafeen a obrigaram a apresentar uma queixa formal contra o marido”, recordou Mattoo. Os testemunhos de mulheres e meninas têm um papel crucial na hora de incriminar os acusados nos casos de violação, explicou. “Depois, quando Shafeen quis dizer a verdade e mudar sua declaração, descobriu que fazer isso era ilegal”, contou Mattoo. Uma batalha legal de três anos prejudicou seriamente o casal. Apesar de viverem juntos e com o filho de oito meses, ambos estão obrigados a comparecer ao tribunal como rivais em cada uma das audiências.
Asma, uma adolescente de 14 anos que vive nos arredores de Srinagar, vive pesadelo semelhante. “Asma saía com um jovem chamado Feroz. Seus pais sabiam da relação. Um dia, quando a jovem não apareceu em casa, eles apresentaram uma queixa contra o noivo acusando-o de sequestro e violação”, contou à IPS Sultán, advogado defensor. Oriundo da zona rural, no momento de sua prisão Feroz trabalhava como cobrador nos ônibus do pai de Asma.
Embora a jovem apresentasse declaração oficial que claramente nega as acusações apresentadas contra seu noivo, o fato de ela ser menor de idade faz com que esse documento seja praticamente inútil, acrescentou Sultán. Agora, ambos vivem juntos com seu filho, enquanto o caso segue nos tribunais. Segundo Sultán, há milhares de casos semelhantes em todo o vale da Caxemira. “Como estas histórias não estão nas primeiras páginas dos jornais e a população não pode, ou não está preparada para debater sobre o tema, frequentemente os casais sofrem em silêncio”, explicou.
Como a shariá não define uma idade legal para as mulheres se casarem, mas na realidade confere às mulheres iguais direitos que os homens para se casarem de acordo com seus desejos, para os especialistas chama a atenção a aversão da sociedade aos códigos escritos da lei islâmica. Os ativistas sociais acreditam que os pais e os clérigos têm um enorme papel a desempenhar na erradicação desta prática que consiste em chamar falsamente de “violação” casamentos com os quais não estão de acordo.
“Se o Islã dá à mulher o direito de escolher quem será seu marido, por que os pais resistem tanto a essa ideia?”, perguntou a ativista Nighat Pandit, em Srinagar. Ela está convencida de que os clérigos deveriam educar tanto os pais como os jovens sobre os valores morais e religiosos que implica a escolha. O colunista e ativista social independente Qurat-ul-Ain acredita que os pais também deveriam dar uma orientação adequada aos seus filhos. E sugeriu que as vítimas exponham a realidade escondida por trás das falsas acusações e que protejam a si e a outros contra esta prática arcaica.
* Os nomes das vítimas são fictícios.