Sob o título “Madraçal no Planalto,” a última edição da revista Veja publicou uma “reportagem” sobre a Universidade de Brasília (UnB) com uma série de erros factuais. A matéria, escrita para demonstrar que a UnB estaria tomada pela intolerância e por “perseguições” a quem pensa diferente de uma reitoria supostamente esquerdista, incorre em várias falsificações e demonstra desconhecimento básico acerca do funcionamento de uma universidade pública brasileira. Uma longa lista de personalidades, incluindo até mesmo o insuspeito ministro Gilmar Mendes, desmentiu categoricamente a Veja.
A matéria afirma que o reitor José Geraldo de Sousa Júnior foi eleito depois de uma “manobra” que deu aos alunos o mesmo peso eleitoral dos docentes e dos funcionários. Cumprindo o já conhecido papel de acadêmico amestrado da Veja, o historiador Marco Antônio Villa empresta outra citação para os propósitos da revista: ”Nenhuma universidade de ponta tem esse tipo de sistema eleitoral”. Acontece que a afirmação da revista é falsa. Não houve qualquer “manobra”. O Conselho Universitário, instância máxima de deliberação da Universidade, no qual os professores representavam 70% dos votantes – e onde, portanto, os alunos nem de longe tinham o mesmo peso dos docentes – decidiu pela eleição paritária.
A afirmação atribuída ao professor Frederico Flósculo – e, tratando-se de Veja, há que se dizer “atribuída”, já que nunca se sabe se o entrevistado realmente disse o que está entre aspas – demonstra ainda mais desconhecimento, não só sobre a UnB, como acerca de todo o sistema universitário público brasileiro. O professor Flósculo teria dito que na UnB “nos últimos anos, meus projetos de pesquisa têm sido sistematicamente rejeitados”. Ora, o financiamento da pesquisa feita em universidades públicas brasileiras vem de órgãos federais, como a Capes e o CNPq, ou estaduais, como a Fapesp. Os projetos são enviados pelos docentes aos órgãos financiadores e depois avaliados por profissionais da área, sem qualquer participação ou interferência da Universidade. Mesmo que ela quisesse, a UnB não poderia “rejeitar” projetos de pesquisa de um docente, posto que não é ela quem os financia. Isto é informação elementar sobre a universidade brasileira, que a revista Veja não possui ou omite em má fé.
A outra inverdade publicada pela Veja se refere à Faculdade de Educação (FE) da UnB. Segundo a revista, a professora Inês Pires de Almeida, da Faculdade de Educação, teria sido vítima de “represálias” por parte da Reitoria, perdido a chefia e sofrido “devassa” em seu trabalho. Sublinhe-se que não há qualquer declaração da professora na matéria e não se sabe se ela corrobora a versão da revista, mas o fato é que a professora Inês simplesmente perdeu uma eleição. A Faculdade de Educação realizou eleições internas em agosto e setembro de 2010, inclusive com debates públicos entre os candidatos. Venceu a professora Carmenísia Jacobina Aires, que hoje ocupa a direção da FE. A perda da condição de gestora de convênios com órgãos de governo adveio do fato de que … a professora Inês não era mais diretora! Simples assim.
Outra falsificação presente na reportagem diz respeito ao professor Ibsen Noronha, que teria dito que sua disciplina “desapareceu do currículo”. O professor Noronha é conhecido por ter sido o advogado que acompanhou o DEM na ação contra as cotas no Supremo Tribunal Federal (STF), ter levado uma reprimenda pública do ministro Lewandowski, e ter escrito um perfil elogioso de um príncipe da família real. Quanto ao teor da matéria, a realidade dos fatos é que Ibsen Noronha jamais foi professor concursado da UnB. Longe de “desaparecer do currículo”, o conteúdo em questão foi incorporado a uma disciplina obrigatória, História do Direito, que, como tal, só pode ser ministrada por professores efetivos da instituição.
A matéria da Veja resvala na difamação pura e simples ao afirmar que o “único mérito acadêmico evidente” do atual reitor, o professor José Geraldo de Sousa Júnior, “deriva de sua militância política”. O currículo do professor José Geraldo inclui a autoria de quatro livros acadêmicos e a organização de 24 publicações, além de 56 artigos em periódicos e 43 capítulos de livros.
Curiosamente, a foto que ilustra a matéria da Veja traz como subtítulo “professores reclamam de controle ideológico”, mas é na verdade a imagem de uma livre manifestação dos estudantes pela aceleração das obras de extensão do campus. A ironia extra é que, depois dessa manifestação, os estudantes foram recebidos pela reitoria para negociar.
A reação à “reportagem” da Veja foi contundente. O Diretório Central dos Estudantes publicou uma carta. O reitor também. A respeitada professora Barbara Freitag-Rouanet escreveu uma bela resposta, assim como o professor Aldo Paviani. Uma longa lista de testemunhos também contradisse a matéria. Veja ouviu seis professores.
É mais um capítulo na história da revista Veja, que agora replica estratégias já adotadas em outras comarcas para desqualificar instituições públicas de ensino com objetivos que têm muito pouco a ver com a busca da verdade.
* Idelber Avelar é colunista da Revista Fórum outro mundo em debate.
** Publicado originalmente no blog do autor, no site da Revista Fórum.