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Falta de leis agrava conflitos pela água em El Salvador

Jeniffer Hernández, de 12 anos, recolhe água da torneira coletiva na comunidade de Los Pinos, no município de Tacuba, ocidente de El Salvador. Este é um dos pontos onde quem não tem água encanada em casa pode coletar água de graça. Foto: EdgardoAyala/IPS
Jeniffer Hernández, de 12 anos, recolhe água da torneira coletiva na comunidade de Los Pinos, no município de Tacuba, ocidente de El Salvador. Este é um dos pontos onde quem não tem água encanada em casa pode coletar água de graça. Foto: EdgardoAyala/IPS

 

Tacuba, El Salvador, 13/11/2014 – Comunidades rurais e organizações sociais de El Salvador concordam que a falta de leis sobre acesso à água é um dos principais obstáculos para resolver as disputas pelo recurso existentes no país. “Se tivéssemos regulamentado na Constituição o direito à água, não estaríamos nessa disputa”, disse à IPS o síndico da Associação de Desenvolvimento Comunitário Benção de Deus (Adescobd), David Díaz, ao lamentar um dos maiores retrocessos desse país na área.

Em 30 de outubro, deputados da direita impediram que a Assembleia Legislativa (unicameral) ratificasse uma reforma do Artigo 69 da Constituição, que concedia status de direito humano à água e à alimentação, obrigando, dessa forma, a garantir o acesso a esses bens.

A Adescobd nasceu no final de 1995 em Tacuba, povoado do departamento de Ahuachapán, 116 quilômetros a oeste de São Salvador, para manejar o projeto de um sistema de água potável que permitisse o abastecimento de sete vilarejos. Desde 2007, a Associação mantém um litígio com o prefeito local, Joel Ernesto Ramírez, pelo controle do sistema.

“O projeto é nosso, trabalhamos duro, nossos maridos passaram fome trabalhando para montar o sistema, que não é do prefeito”, afirmou à IPS Ermelinda Hernández, de La Puerta, enquanto lavava milho recém-cozido para preparar tortilhas para o almoço. Moradores dessas localidades, que reúnem cerca de 12 mil habitantes, disseram que o prefeito se apropriou do projeto que levaram adiante os associados quando, diante da falta de apoio da prefeitura, conseguiram fundos da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) e assistência técnica da Crea Internacional.

Denunciam que o prefeito, alegando que os antigos gestores, removidos pelos sócios, deixaram a associação quebrada, pretende se apoderar da propriedade onde nasce a água que abastece o sistema e assim controlá-lo. Também alegam que Ramírez planeja vender o recurso a outras comunidades alheias ao município e ao projeto, o que deixaria os sete vilarejos sem fornecimento suficiente.

A IPS não conseguiu entrar em contato com o prefeito para ouvir sua versão dos fatos.

Com a reforma constitucional “teríamos melhores ferramentas legais para nos defender, a Constituição nos apararia”, disse Díaz, do vilarejo de Loma Larga. Deputados do Partido de Conciliação Nacional (PCN) e da Aliança Republicana Nacionalista (Arena), ambos de direita, negaram seus votos para ratificar a mudança constitucional. A reforma havia sido aprovada em abril de 2012 por 81 dos 84 deputados, antes que terminassem seus mandatos de três anos no mês seguinte.

Neste país, de 6,2 milhões de habitantes, as reformas constitucionais devem ser aprovadas em uma legislatura e ratificadas com dois terços dos votos (56) na seguinte. Neste caso, a que terminará em maio de 2015. A modificação buscava que o Estado garantisse que os cidadãos fossem a prioridade no uso dos recursos hídricos e não os interesses econômicos, explicou à IPS a ativista Karen Ramírez, porta-voz do Fórum da Água, que reúne mais de uma centena de organizações que lutam pelo direito à água.

A reforma estabelecia que é obrigação do Estado “aproveitar e preservar o recurso hídrico e proporcionar acesso aos habitantes”. Esse compromisso exigia políticas públicas e leis para regular o setor. A água encanada é fornecida aos salvadorenhos pela Administração Nacional de Água e Esgoto, órgão estatal autônomo sem poder para decidir quem tem direito à água, quando há conflito de escassez. Tampouco tem jurisdição em projetos comunitários como o de Tacuba, nem voz na confrontação atual.

Hoje, os habitantes dos vilarejos da Adescobd têm água sem restrições. Mas, apesar de em maio deste ano a Suprema Corte de Justiça ter acolhido um amparo contra o fechamento da associação pela prefeitura, a entidade prepara uma demanda contra a vulneração de seus direitos junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, contou à IPS seu advogado, Edwin Trejo.

Percorrendo comunidades afetadas, a IPS conversou em Los Pinos com homens, mulheres e crianças que faziam fila à beira de um caminho de terra para pegar água de uma torneira conectada com o sistema e que fornece água gratuitamente. “Antes tínhamos que andar duas horas até o rio Nejapa para conseguir água e agora a temos aqui”, disse uma das mulheres, María Esther Gómez, indignada como os demais pelo que consideram manobras para tirarem sua água.

O de Tacuba é só um exemplo dos conflitos pela água que ocorrem em El Salvador, diante da falta de leis e controles. Outro caso é o da localidade de El Tablón, no município de Sociedad, no departamento de Morazán. Ali os moradores dos vilarejos Los Amayas, El Carrizal e El Centro se enfrentam pelo serviço com os habitantes de Las Cruces. O sistema de água potável foi construído pelos quatro vilarejos nos anos 1980. “Eles pensam que vamos deixá-los sem água, e não é isso, o que queremos é distribuição em partes iguais e que eles não abusem”, explicou à IPS a camponesa Aura Zapata sobre a situação dos moradores de Las Cruces.

Neste país, 93,5% dos habitantes urbanos têm acesso à água potável encanada. Mas o número cai para 69,8% na área rural, onde 15% se abastecem de poços e outros 15% mediante outros meios, segundo dados da Pesquisa de Famílias Múltiplas, de maio de 2013.

Ramírez disse que os deputados contrários à reforma buscam proteger os interesses de poderosos grupos empresariais, que veem seus lucros ameaçados se a Constituição priorizar os cidadãos na questão do acesso à água. À não ratificação da reforma constitucional somou-se outro revés para os defensores da democratização do acesso à água.

Após anos de espera, a Assembleia Legislativa finalmente discute um projeto de Lei Geral de Águas. Mas na comissão encarregada, deputados de direita modificaram o nevrálgico Artigo 10 do texto, que criava um novo órgão regulador do recurso, a Comissão Nacional da Água (Conagua), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente.

Mas em 7 de outubro deputados do PCN, da Arena e Grande Aliança Nacional (Gana) impuseram uma mudança para que a Conagua seja controlada por um novo órgão autônomo, com participação de cinco sindicatos empresariais e dois organismos estatais. “Quando há conflitos onde o órgão reitor deve decidir a favor das pessoas, a votação coloca em desvantagem os direitos dos pobres”, afirmou Ramírez.

A governante Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) e o Ministério do Meio Ambiente asseguram que reverterão a mudança durante o debate do projeto no plenário da Assembleia. A FMLN é a principal força parlamentar, mas apenas com 31 deputados, seguida da Arena com 28. Envolverde/IPS