"Falta uma pesquisa em Comunicação genuinamente brasileira" - Entrevista com José Marques de Melo

Perfil

José Marques de Melo.

José Marques de Melo nasceu em Palmeira dos Índios (AL), em junho de 1943. Começou no jornalismo antes mesmo de ingressar na universidade, atuando em jornais diários de Maceió, como correspondente do interior, para os jornais Gazeta de Alagoas e Jornal de Alagoas. Posteriormente, colaborou com o Jornal do Commercio e o Última Hora, já em Recife (PE).

Graduou-se em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco, em 1964, e bacharelou-se em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1965. No ano seguinte inicia suas pesquisas em Comunicação, obtendo sua pós-graduação pelo Centro Internacional de Estudos Superiores de Comunicação para a América Latina, em Quito, no Equador.

Foi um dos fundadores da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), na qual obteve os títulos de doutor, livre-docente, professoradjunto e professor catedrático de Jornalismo. Na mesma universidade torna-se, em 1973, o primeiro doutor em Jornalismo do Brasil.

Agraciado com diversos títulos por universidades de todo o mundo, o professor Marques de Melo atualmente dá aulas na Universidade Metodista, em São Paulo, é autor de mais de 40 livros sobre comunicação.

Considerando o papel estratégico que as mídias têm no desenvolvimento brasileiro, não só como ramo econômico, mas como principal palco para o debate de ideias – a imprensa já foi conhecida como “o quarto poder” -, constata-se que a pesquisa em comunicação no Brasil é ainda pouco conhecida e divulgada. Para o primeiro doutor em Jornalismo no Brasil, e uma das maiores autoridades em pesquisa em comunicação no país e no mundo, o professor José Marques de Melo, a pesquisa brasileira neste setor ainda mimetiza a produção feita em países anglófonos: “falta uma pesquisa em comunicação genuinamente brasileira”.

Para o professor, a universidade brasileira não dialoga com as empresas e indústria, restringindo o debate sobre comunicação e desenvolvimento somente à academia. Para abrir a discussão, e cobrir parte desta lacuna, o Ipea fechou uma parceria com a Socicom (Federação Brasileira das Sociedades Científicas da comunicação), presidida por Marques de Melo, para discutir políticas públicas de comunicação no Brasil. O professor, em entrevista para a Desafios, destaca a forte relação entre comunicação e economia, e constata, ecoando Raul Prebisch: “não há desenvolvimento sem comunicação”.

Desafios – Qual a relação entre comunicação e desenvolvimento econômico?

Marques de Melo – A mesma relação entre o ovo e a galinha, ninguém sabe quem veio primeiro. É uma relação paradoxal. Há uma tese que diz que comunicação gera desenvolvimento econômico, engendrada por um sociólogo americano chamado Daniel Lerner, criador de uma teoria que diz que a comunicação está na modernização da sociedade. Basicamente diz que quanto mais meios de comunicação há numa sociedade, mais ela vai se modernizando, difundindo informações, somando elites. É quando a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) entra em cena com o projeto de utilizar os meios de comunicação para acelerar o desenvolvimento com programas de alfabetização, educação supletiva. Raul Prebisch, que foi um dos maiores economistas da América Latina, e muito ligado à Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe), dizia que comunicação e desenvolvimento são dois fatores que caminham paralelamente. Não há desenvolvimento sem comunicação.

Desafios – Como a comunicação e a Economia se relacionam?

Marques de Melo – Existe uma disciplina chamada Economia Política da Comunicação, é um setor que está na crista da onda, despertando muita atenção no Brasil. Se refere ao estudo da comunicação do ponto de vista da economia, mas não da economia clássica, mas com uma certa influência do marxismo. Seria uma economia crítica, está menos para Roberto Campos e mais para Celso Furtado, mais ligado às correntes desenvolvimentistas.

O Brasil se destaca nessa área, talvez pelo fato de ser um país onde melhor se desenvolveram os estudos econômicos na América Latina. E também pelo fato que temos um Estado que planeja.

Desafios – Quando se inicia a pesquisa em comunicação no Brasil?

Marques de Melo – Esta é uma atividade que tem quase meio século de tradição. Fiz um levantamento recente sobre os primeiros estudos a respeito de jornalismo no Brasil, e eles remontam ao século retrasado. O primeiro artigo em periódico nacional tratando de jornalismo é de 1859, no Rio de Janeiro. Então temos quase 150 anos de estudos sobre jornalismo. Não são estudos empíricos, mas de natureza documental e histórica.

A Comunicação como área do conhecimento só vai surgir mais recentemente. O que temos originalmente são atividades de comunicação social que foram sendo estudadas isoladamente, constituindo blocos de saber, por exemplo, jornalismo é uma área que está sendo desenvolvida desde o século 19, mas tem o cinema, o rádio, a televisão, a propaganda, enfim, vários segmentos que foram acumulando conhecimento.

Na passagem do século 19 para o 20 surge o jornal empresa, saindo de uma imprensa artesanal. Mas ainda não representa uma indústria da comunicação, porque as tiragens são pequenas. Inclusive nesta fase a imprensa em língua estrangeira produzida no Brasil era superior à produzida em português, jornais em italiano e em alemão tinham tiragens maiores. Só vamos ter um desenvolvimento maior da imprensa em língua portuguesa quando os imigrantes se alfabetizam em português e começam a demandar informações.

A chamada pesquisa em comunicação ou pesquisa de mídia remonta aos anos de 1940, quando a indústria cultural começa a se desenvolver no país. O marco deste período é a fundação do Ibope em 1942, quando se instalam no Brasil algumas empresas que vão coletar dados para as organizações midiáticas e também para as organizações de anunciantes e formadores de opinião pública.

Desafios – E como essa pesquisa evoluiu aqui?

Marques de Melo – A evolução da pesquisa em Comunicação no Brasil não se dá do modo tradicional, como se deu em outros países, a partir da imprensa escrita. Aqui a pesquisa vai se desenvolver por meio do rádio e da televisão. O rádio se torna industrial na década de 1940, quando passa a viver de anúncios. A indústria da propaganda passa a ser a mola fundamental para entendermos o desenvolvimento da indústria cultural no Brasil.

As primeiras pesquisas, qualitativas e quantitativas, começam com os institutos que medem não só a audiência, mas os hábitos de consumo. Então acontecem por meio do mercado, mas a academia passa ao largo dessas pesquisas, até porque ela ainda era incipiente na época. A primeira escola de jornalismo do Brasil é de 1947, em São Paulo. Então é só a partir dos anos 1950 que teremos um maior desenvolvimento da formação de jornalistas no Brasil.

"O primeiro artigo em periódico nacional tratando de jornalismo é de 1859, no Rio de Janeiro. Então temos quase 150 anos de estudos sobre jornalismo. Não são estudos empíricos, mas de natureza documental e histórica."

Desafios – E a moderna pesquisa em comunicação, quando surge?

Marques de Melo – Ela surge nos anos de 1960, no bojo de uma preparação do país para entender os problemas de macroeconomia. Inclusive a fundação do Ipea é contemporânea da gênese da moderna pesquisa em comunicação no Brasil, que se dá quando o Roberto Campos (ministro do Planejamento no governo de Castelo Branco) promove o debate sobre a relação entre comunicação e desenvolvimento.

Nesta época a Unesco lança um projeto mundial de aceleração do desenvolvimento, em algo que chamamos de Plano Marshall para o terceiro mundo. O Plano Marshall foi um plano de recuperação para a Europa no pós-guerra, e aqui no Brasil quiseram fazer algo como importar tecnologias baratas. A ideia era usar sobretudo a mídia para resolver o problema educacional, pois temos ainda hoje nesses países um grande número de jovens fora da escola.

Então o plano que a Unesco patrocina era desenvolver a educação através do rádio e da televisão. Nessa época há um investimento maciço no continente, inclusive com subsídios do governo norte-americano para trazer esse material para cá, e nesse momento o Roberto Campos vai acolher essa ideia de comunicação como mola para impulsionar o desenvolvimento.

É neste momento que vão ser criados no Brasil uma série de organizações, no âmbito do Estado e da sociedade civil, que darão conta do conhecimento como instrumento de tomada de decisão, tal qual o Ipea, a Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), uma série de organismos que são criados para planejar com segurança. É neste momento em que a pesquisa em comunicação no Brasil começa a se desenvolver nas universidades.

Desafios – E quais os principais centros de referência em pesquisa neste segmento no Brasil?

Marques de Melo – O primeiro centro universitário de pesquisa em comunicação do Brasil surge em Recife, fazendo pesquisas de modo semelhante ao que era feito nos Estados Unidos, nos anos 1960, na mesma época em que estão sendo criadas as primeiras escolas de comunicação subvencionadas pelo Estado.

Há duas instituições-chave para entendermos a moderna pesquisa de comunicações no país: a Universidade de Brasília, cuja faculdade de Comunicação é criada em 1964. Ela foi dirigida por Pompeu de Souza, que resolve fazer um périplo pelo mundo todo para avaliar como outros países ensinavam comunicação.

Paralelamente a Universidade de São Paulo (USP) cria em 1966 a Escola de Comunicação e Artes (ECA), sendo a primeira escola do Brasil com investimento em equipamentos, laboratório e pesquisa. O primeiro corpo docente da ECA foi todo obrigado a se inscrever em pesquisa, e eu pertenço a essa geração. Quando fomos contratados, éramos obrigados a nos inscrevermos no doutorado, senão não podíamos permanecer além do contrato inicial, que era de três anos. Aí começa o investimento em pesquisa no país, e que se começa a ter uma geração de conhecimento em várias instituições.

Desafios – E como está esta pesquisa hoje?

Marques de Melo – Eu sou muito crítico da pesquisa em comunicação no Brasil. Isso porque ela sofreu de um viés que a universidade brasileira tem, criada para servir à sociedade, mas a pesquisa em comunicação é aplicada. Esse problema é de toda a área de Humanas, que também não procurou se afirmar como útil à sociedade. Ela tem uma função crítica que é importante, mas a crítica pela crítica não resolve.

Hoje somos um dos países que mais produz conhecimento em comunicação no mundo, estamos entre os que mais apresentam estudos em congressos internacionais, mas isso é só quantitativo. Temos como paralelo os EUA, que foi o país que mais desenvolveu pesquisas na área, porque os estudos lá são financiados pela indústria, mesmo nas universidades.

Desafios – E em relação aos demais países da América Latina, qual a posição do Brasil?

Marques de Melo – O Brasil está a anos-luz dos demais países latino-americanos. Respondemos por quase 80% de toda a pesquisa na região, seja em produção, em número de artigos publicados. Nos congressos mundiais somos o segundo país em número de estudos aceitos para apresentação.

Desafios – Mas então porque esta pesquisa repercute tão pouco aqui?

Marques de Melo – Ela repercute pouco porque as universidades se fecham, como um caramujo, sempre voltadas para dentro. Fazemos mais de mil teses por ano, entre mestrado e doutorado, só que esta pesquisa não é veiculada para a indústria. Precisaríamos de um mecanismo para que as empresas tomem conhecimento da pesquisa que está sendo realizada pelas universidades.

A academia inclusive rejeita parcerias com a indústria. Nos EUA estas pesquisas se desenvolveram financiadas pelas indústrias. Nesse país, as empresas quando precisavam de dados, recorriam à contratação de universidades, em vez de instituições privadas.

Desafios – E porque a pesquisa brasileira repercute tão pouco no mundo?

Marques de Melo – Há dois fatores: em primeiro lugar, nossa pesquisa não é relevante, porque de modo geral nós mimetizamos a pesquisa estrangeira. Ou seja, nossa pesquisa emplaca em congressos internacionais porque estamos apresentando produtos semelhantes aos ingleses, franceses e americanos. E quando você mimetiza, você deixa de ter impacto. Falta uma pesquisa genuinamente brasileira, que trate de temas da cultura e tradição do país, e não fique apenas quantificando quantas pessoas leem jornais e livros. Se houvesse uma pesquisa original, autenticamente nacional e com características brasileiras, ela repercutiria mais.

Outro ponto é que as comunidades científicas internacionais são marcadamente anglófonas. Todas vivem de acordo com a pauta estabelecida por EUA, Inglaterra, Austrália, e contam com o beneplácito da Alemanha, França e Itália, que fazem parte dos países que mais produzem conhecimento, e os demais países gravitam em torno destes.

Desafios- Como popularizar a pesquisa e o debate sobre este tema. É possível?

Marques de Melo – Acho que o primeiro passo é abrir a universidade. Enquanto ela for fechada em si mesma, como é hoje, não haverá popularização. Acho que este governo, você pode até criticar, mas ele leva alguma vantagem sobre os outros neste sentido, de abrir a universidade. O ProUni, a política de cotas, e sobretudo o investimento na criação de universidades de ponta, nas áreas de fronteira, no sertão, no litoral, estão mudando um pouco esse atual modelo de universidade.

Mas precisa haver também uma indução por parte do Estado, para ampliar o debate sobre comunicação no Brasil. Não sou favorável a uma estatização da discussão, mas acho que a sociedade civil tem que estar presente neste debate, e parte desse movimento depende de mais indução do Estado.

Desafios – Qual a área mais carente de pesquisa em comunicação no país?

Marques de Melo – No Brasil não temos estudos holísticos, que envolvam diferentes áreas e na pesquisa. Este trabalho que a Socicom está fazendo com o Ipea vai possibilitar que pela primeira vez tenhamos um panorama dos estudos em comunicação no país. Não temos ainda um quadro explícito do conhecimento gerado nesta área. Daí a importância da parceria com o Ipea, para a coleta de dados de modo sistemático, o que é extremamente importante para análise e planejamento, predição e previsão.

Desafios – E qual sua avaliação sobre a imprensa brasileira hoje?

Marques de Melo – A imprensa diária no Brasil é só para as elites pois temos uma população de quase 200 milhões de habitantes para uma tiragem que não chega a 10 milhões de exemplares diários. Nos anos 1950 alcançamos nosso pico proporcional, de 5 milhões de exemplares diários. A leitura de jornais baixou bastante no período do autoritarismo, porque os jornais não tinham credibilidade, estavam sob censura. A circulação volta a aumentar depois da redemocratização de 1988, e tem seu pico de aumento nos anos 1990, quando os jornais começam a oferecer brindes junto com as vendas (livros, dicionários, enciclopédias).

Hoje a tiragem está em sete ou oito milhões de exemplares diários, o que é uma situação insólita no panorama mundial, para o tamanho da população que temos. Mesmo aqui na América Latina, países como Paraguai e Bolívia têm uma leitura de jornais proporcionalmente maior que a nossa.

* Publicado originalmente no site do Ipea.