O episódio envolvendo o projeto Escola Sem Homofobia do MEC e a marcha cristã contra o PLC 122 (que revê punições para quem viola a dignidade e os direitos de minorias vulneráveis, como idosos, pessoas com deficiências e LGBTs) me suscitaram uma questão que está ligada ao crescimento do fundamentalismo religioso e aos esforços deste para converter seus dogmas em leis para todos. A questão nos leva a crer que o Estado laico e de direito, as liberdades civis e o humanismo estão ameaçados pelo fundamentalismo cristão (católico e, sobretudo, evangélico neopentecostal).
Em primeiro lugar, quero ressaltar que não estou me referindo à totalidade dos crentes cristãos, mas apenas aos fundamentalistas. Conheço muitos crentes católicos e evangélicos que comungam do respeito (e até se sacrificam) pelas liberdades, pela justiça e pela humanidade. Eu mesmo fui educado no cristianismo católico e herdei, do catecismo e das comunidades eclesiais de base, o humanismo e o amor pelo outro que hoje defendo, embora não seja mais católico. Há muitos outros crentes que defendem o mesmo. Mas não é o caso dos fundamentalistas.
Cristãos fundamentalistas são aqueles que creem na Bíblia sem interpretá-la. Acreditam nos fundamentos de sua religião como verdades absolutas e inquestionáveis – e a Bíblia, como um texto literário escrito em contexto histórico e social bastante diferente do nosso, na maioria de suas passagens não deve ser tomada ao pé da letra. O fundamentalismo religioso tem, então, total identidade com o fanatismo e com o obscurantismo.
As ideias de cristãos fundamentalistas acerca da homossexualidade – de que esta é uma doença ou um “pecado mortal” e que os homossexuais vivem em pecado e que, portanto, “não herdarão o reino dos céus” – são obscurantistas e fanáticas e abrem mão da razão. Esses “cristãos” – muitos deles ocupando espaços na tevê, nas Assembléias Legislativas, Câmaras de Vereadores e no Congresso Nacional – querem que mulheres e homens vivam segundo leis e valores descritos em um livro (a Bíblia) escrito dezenas de séculos antes de nós. Querem que joguemos fora todas as descobertas científicas e argumentos filosóficos acumulados nos últimos dois mil anos de discurso humano, para vivermos conforme vivem os personagens da Bíblia. Não! Mulheres e homens precisam desenvolver suas virtudes e possibilidades humanas, precisam ser humanistas e lutar pelas liberdades civis.
Não se calar diante da tagarelice desses parlamentares e de outros fundamentalistas é, portanto, lutar pelo respeito mútuo entre os diferentes, pela solidariedade entre os seres humanos, pela liberdade de crença e de descrença (sim, ateus e agnósticos têm o direito de não crer e nem por isto devem ser considerados pessoas sem ética) e pela laicidade. Em seu Artigo 19, a Constituição afirma que o Estado brasileiro é laico e que, como tal, não deve nem pode estabelecer preferências entre as religiões. O texto constitucional dá à pessoa humana o direito de acreditar ou não em um ser divino, mas afirma que o Estado não tem sentimento religioso.
A história nos mostra que o fundamentalismo em qualquer religião só leva as pessoas ao autoritarismo, à escravidão e à violência. Fundamentalistas não têm compromisso com a ética que assegura a vida nem com o bem-estar de todos. Essa gente quer estabelecer a paz dos cemitérios. Como diz a letra da canção, “fé cega, faca amolada”.
* Jean Wyllys é jornalista e linguista, deputado federal pelo PSOL-RJ e integrante da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos LGBT.
** Publicado originalmente na coluna do autor, no site da revista Carta Capital.