Conheça a trajetória do sociólogo que não limitou seu conhecimento e sua militância aos muros da universidade.
No dia 10 de agosto, completaram-se 15 anos da morte do sociólogo Florestan Fernandes. Obviedade dizer que se trata de um dos maiores intelectuais que o Brasil já teve, mas é preciso ressaltar que, além da sua rica produção, ele não a confinou aos muros da universidade. Como lembra Barbara Freitag, professora titular do departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), no artigo “Florestan Fernandes: revisitado”, ele conseguiu encarnar o sentido da palavra “intelectual” utilizado por Jürgen Habermas, como aquele que “se caracteriza, entre outras coisas, pelo fato de que abre mão de qualquer dimensão elitista, e de que fala, no espaço público, não como um intelectual de partido, ou como um conselheiro do rei, mas somente em seu próprio nome, como cidadão, naturalmente com o objetivo de convencer os outros”.
Homem crítico e conectado com as grandes questões do seu tempo, o sociólogo paulista teve contato muito cedo com a realidade brasileira. Começou a trabalhar aos seis anos como engraxate e passou por diversas outras ocupações para auxiliar no sustento próprio e da família. Filho de uma migrante portuguesa que prestava serviços domésticos, seu nome de batismo foi inspirado no personagem principal da ópera Fidélio, única escrita por Beethoven. Mas ganhou da patroa de sua mãe – também sua madrinha –, Hermínia Bresser de Lima, a alcunha de “Vicente”, pois a origem estrangeira do nome do futuro intelectual incomodava a matriarca da aristocrática família. Este, além de outros atos que denunciavam a perspectiva senhorial e autoritária da elite brasileira, fariam parte das reflexões de Florestan mais tarde.
Com uma infância e adolescência ocupadas com o trabalho, o estudo ficou em segundo plano e aos nove anos abandonou as salas de aula, voltando apenas aos 17, quando fez o madureza, uma espécie de curso supletivo. Aos 21, entrou no vestibular para a Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e, no começo de 1941, iniciou o curso de graduação em Ciências Sociais. No entanto, teria muitas dificuldades nesse ingresso na vida acadêmica, confessadas no livro A Sociologia no Brasil (Editora Petrópolis), que ajudariam a formar o perfil e atuação do intelectual.
“A cultura dos meus mestres estrangeiros me intimidava. Eu pensava que jamais conseguiria igualá-los. O padrão era demasiado alto para nossas potencialidades provincianas – para o que o ambiente poderia suportar – e especialmente para mim, com a minha precária bagagem intelectual e as dificuldades materiais com que me defrontava, as quais roubavam grande parte do meu tempo e das minhas energias do que gostaria de fazer. Contudo, como me propunha a ser um professor de nível médio, as frustrações e os obstáculos não interferiam no meu rendimento possível. O desafio era trabalhado psicologicamente e, na verdade, reduzido à sua expressão mais simples: as exigências diretas das aulas, das provas e dos trabalhos de aproveitamento. Com isso, empobrecia o meu horizonte intelectual e humano. No entanto, não poderia sobrepujar-me e resolver os meus problemas concretos sem essa redução simplificadora, que se corrigiu por si própria, na medida em que progredi como estudante e adquiri uma nova estatura psicológica. Em suma, o Vicente que eu fora estava finalmente morrendo e nascia em seu lugar, de forma assustadora para mim, o Florestan que eu iria ser.”
A questão do negro
Freitag sugere uma divisão da obra de Florestan em três fases. A primeira se situa entre 1941 e 1968, antes da sua aposentadoria compulsória decretada pelo regime militar. No período, escreveu obras como Organização Social dos Tupinambás (1949) e A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá (1952), Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica (1959) e A Integração do Negro na Sociedade de Classes (1965). Esta última, resultado de sua tese de cátedra em Sociologia na USP, é significativa por dar uma nova direção ao estudo da situação racial no Brasil, contrapondo-se a muitas proposições apresentadas, por exemplo, em Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre.
O livro trata da abolição e de como ela foi incompleta, partindo da análise do que ocorreu na cidade de São Paulo. Apesar da libertação, o Estado brasileiro não garantiu uma igualdade de fato entre os negros recém-libertos e os brancos, estabelecida apenas no plano jurídico. Para o autor, era preciso observar a herança escravista, evidenciando o preconceito racial como um dos aspectos de um processo que marca as relações sociais no Brasil, ligadas ao desenvolvimento do capitalismo no país.
A reinterpretação de Florestan a respeito dessa questão remete a um traço marcante da sua trajetória, que é a análise da sociedade a partir da ótica da exclusão. “Os negros são os testemunhos vivos da persistência de um colonialismo destrutivo, disfarçado com habilidade e soterrado por uma opressão inacreditável. O mesmo ocorre com o indígena, com os párias da terra e com os trabalhadores semilivres das cidades”, explica a socióloga Heloísa Fernandes, filha de Florestan.
Sua preocupação com as relações raciais, no entanto, aparece antes de A Integração do Negro na Sociedade de Classes. No início dos anos 1950, a Unesco realizava uma pesquisa no Brasil querendo desvendar como o país se constituía em um contraponto positivo à segregação racial existente nos Estados Unidos já que aqui, supostamente, a convivência entre negros e brancos era mais harmoniosa, mesmo levando-se em conta o recente passado escravista. Apesar dos recursos escassos, principalmente diante do tamanho do estudo, Roger Bastide convenceu seu colega de USP a aceitar a empreitada.
Conforme relatado por Haroldo Ceravolo Sereza, autor de Florestan – A Inteligência Militante (Boitempo Editorial), “o resultado do trabalho apontou numa direção oposta à tese da Unesco. Embora o preconceito de cor tivesse, em São Paulo, de fato, contornos diferentes do preconceito nos Estados Unidos, a pesquisa revelou que ele existia, guardava profundas raízes com a escravidão e, o que é muito significativo, também com o seu fim”.
As reações aos resultados da pesquisa foram narradas pelo próprio sociólogo no Seminário de Cultura Brasileira, realizado em São Paulo, em 1984, cuja exposição está em Florestan Fernandes – Leituras e Legados (Global Editora). “De imediato, fomos considerados ‘tendenciosos’ e responsáveis pela ‘deformação da verdade’ em vários níveis da sociedade circundante. Houve mesmo uma ocorrência típica. O diretor de uma escola de sociologia que afirmou publicamente que Bastide e eu estávamos introduzindo ‘o problema’ no Brasil! A comunidade negra, por sua vez, exagerou a importância da nossa contribuição. Estava maravilhada com o fato de termos rompido aquele isolamento psicossocial e histórico, feito dele uma arma da razão e da crítica. Principalmente, ficaram encantados com o fato de suas lutas terem encontrado resposta e confirmação. Parecia-lhes que a sociologia lhes abria uma ‘ponte de justiça’, acenando com a perspectiva de que aquilo que não se convertera em história poderia vir a sê-lo no futuro próximo.”
A revolução burguesa que não houve
Em abril de 1969, um acontecimento traumático afetou a trajetória de Florestan. Ele perdeu sua cátedra de Sociologia na USP, sendo aposentado compulsoriamente pelo regime militar, em razão do Ato Institucional nº 5. Aquilo, segundo suas próprias palavras, foi “um processo de desabamento de sua relação com o mundo intelectual”. A ditadura havia lhe tirado sua razão de ser e, impedido de dar aulas no Brasil, aceitou um convite da Universidade de Toronto para lecionar e rumou, sem sua família, para o Canadá. “Florestan não podia mais aparecer em público, escrever para jornais, manifestar sua oposição à ditadura que governava mediante odiosos ‘atos institucionais’. Reagiu de duas formas ‘radicais’ a essa limitação: aceitou uma cátedra no Canadá e passou a usar os conceitos marxistas, falando em ‘luta de classes’ e ‘revolução’, processos sociais a serem alimentados para superar a ditadura imposta no Brasil”, analisa Freitag.
O período de exílio durou até 1971, mas mesmo de volta, sua clausura prosseguiu, como ele mesmo relatou. “Fui para Toronto e fiquei lá pensando que podia lutar ali contra a ditadura. Depois, descobri que lá não se luta contra a ditadura. Os que nos ouviam eram pessoas que eu não precisava convencer (…). O esforço lá, ia na direção de fortalecer a ditadura. Por isso é que pensei: eu volto para o Brasil e lá eu vou poder lutar. Vim para cá e não pude lutar coisa alguma, porque realmente de 1973 em diante vivi dentro de um isolamento tremendo. Até 1975 eu tinha o que fazer dentro da produção anterior. Podia viver, assim, o isolamento de maneira equilibrada. Mas, depois, não. Depois eu resvalei. E a radicalização pela qual eu passei engendrou o desequilíbrio, que tive de enfrentar como pessoa. Não vá pensar que um intelectual, um sociólogo, está livre das contingências que afetam todos os seres humanos. E na medida em que eu estava isolado eu vi amigos e companheiros que sequer se lembravam de mim, eu fiquei prisioneiro da família. (…) Dei alguns cursos no Sedes e um cursinho sobre a teoria do autoritarismo, uma coisa intermediária. De repente, me vejo diante de um curso e da necessidade de engolir a condição de professor, que eu não queria engolir de novo. Realmente o que eu queria era exatamente voltar a uma atividade militante e só militante. Daí essa tensão, essa frustração.”
Florestan, como disse certa vez, viajou como “sociólogo e socialista” e retornou “socialista e sociólogo”. E é nesse período que publica uma de suas obras cruciais, A Revolução Burguesa no Brasil, que havia começado a escrever, com base em anotações de aulas, em 1966. O objetivo, de acordo com a nota explicativa do autor, era dar uma “resposta intelectual à situação política que se criara com o regime instaurado em 31 de março de 1964”. Incompleto devido à sua aposentadoria, ele retomou o trabalho, redigindo a terceira parte do livro no segundo semestre de 1973.
“Escrito em um período de maturidade intelectual, praticamente todas as reflexões anteriores dele estão condensadas nessa obra”, comenta Lidiane Soares Rodrigues, doutoranda em História na USP. “Hoje, ele tende a ser lido pelo enfoque das relações internacionais, porque é o tema mais candente, e se discute muito atualmente a política externa, mas quando foi escrito a questão eram as possibilidades de formação da sociedade moderna na periferia do capitalismo e as formas de inserção do Brasil no cenário internacional como um país independente, autônomo, capaz de tomar decisões em benefício próprio”, completa. Falava-se, na prática, da constituição de uma sociedade moderna, aberta à ascensão social pelo mérito e na qual são concedidas condições minimamente equivalentes de acesso aos bens sociais.
Mas esse modelo de sociedade, na visão de Florestan, não prosperou no Brasil. “Isso não se realizou porque nossa burguesia é conservadora e nossos padrões de sociabilidade também são extremamente conservadores”, explica Lidiane. Aqui, criaram-se as condições para que se desenvolvesse um “capitalismo dependente”, que seria, segundo Rachel Aguiar Estevam do Carmo, mestranda pela Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, fruto da “chamada dupla articulação, que seria o entrosamento econômico de maneira desigual e dependente entre os países que possuem maior desenvolvimento em detrimento dos países que possuem relações sociais ainda estamentais”.
Na verdade, a revolução burguesa clássica não havia sido realizada no Brasil e traços sociais do passado, representados, por exemplo, pelas relações senhoriais, conviviam dentro de uma nova ordem econômica competitiva. Os novos atores econômicos não precisaram brigar com os antigos, mas os absorveram, passando a adotar também parte de seus métodos de dominação não capitalista.
Para Florestan, a revolução que não havia sido feita pela burguesia nacional – e sem a qual não seria possível superar as mazelas sociais – teria que ser feita pelos trabalhadores. Mas não era algo simples. “Por isso que depois, nos anos 1980, ele vai gostar de se denominar como leninista, pois acredita que, no caso da periferia do capitalismo, revolução burguesa e socialista se confundem. Caberia ao sujeito proletário garantir ambas, seria na prática uma sobretarefa. A burguesia não fez sua tarefa histórica e restava ao proletariado fazer as duas”, explica Lidiane.
“Quem leu a obra mais complexa de Florestan, A Revolução Burguesa no Brasil, não pode deixar de dar razão aos diagnósticos feitos pelo autor, denunciando os ‘obstáculos’ e ‘resistências’ criados pelas classes detentoras do poder, via de regra brancos, para concretizar uma sociedade democrática justa, igualitária e desenvolvida”, reflete Barbara Freitag, em entrevista concedida por e-mail, questionando em seguida: “Será que a nação brasileira, integrando índios, negros e brancos, somente se realizaria por intermédio de uma verdadeira revolução socialista?”.
O “político-revolucionário” e o PT
Em 1975, Florestan passa por uma cirurgia de próstata e, ao receber uma transfusão de sangue, contrai o vírus da hepatite C, responsável por um processo contínuo de piora da sua saúde. Ao mesmo tempo adota uma postura mais publicista que já se acentuava desde sua cassação, em uma fase de sua produção chamada por Freitag de “político-revolucionário”. Nesse período, que duraria até 1986, quando se elege deputado federal constituinte pelo PT, ele “não somente muda de referencial teórico e conceitual, apoiando-se no materialismo histórico de Marx e Lenin, como se torna menos “científico” e mais polêmico, político e revolucionário.
Fernandes percebera, na própria carne, que o indivíduo, mesmo altamente dotado e consciente para fazer o diagnóstico correto do seu tempo, não tem poder de transformação da sociedade como indivíduo isolado. Seu potencial de transformação da realidade global depende de conjunturas e tendências internacionais, nas quais o indivíduo singular submerge, sem poder de intervenção ou transformação”, analisa Freitag no artigo Florestan Fernandes: Revisitado.
“Certamente, essa ruptura epistemológica não se deu da noite para o dia, como foi sua aposentadoria compulsória em decorrência do AI-5 de 1968. Já no Florestan reformista se encontrava o embrião do Florestan revolucionário. Mas talvez esse último não se desenvolvesse de forma tão radical e consistente em direção ao socialismo se a conjuntura política tivesse sido outra, ou melhor, se tivesse continuado o pacto populista-desenvolvimentista”, pondera a socióloga.
Nesse sentido, Heloísa Fernandes explica que seu pai nunca foi um sociólogo dogmático. “Ele manteve a ideia de que a sociologia clássica, que ele denominava sociologia da ordem, detinha e expressava potencialidades criadoras, vinculadas à história e à inquietação intelectual, diferentemente da nova sociologia da ordem, aquela da fase monopolista do capitalismo, que perde a dimensão histórica e que ele denomina de ‘sociologia de defesa ativa da ordem’; quando o sociólogo tende a se tornar mero ‘paladino da ordem’, que ele concebe como um ‘problema técnico` e não mais histórico. Ela cita um trecho de A Natureza Sociológica para expressar essa visão. “Os computadores não invadiram, pois, apenas os ‘meios de conhecimento’ da sociologia. Eles impregnaram a imaginação sociológica, levando-a a praticar uma ‘redução cibernética da realidade’. Em consequência, a ordem deixa de ser um fato histórico (…)”.
Assim, segundo Heloísa, para Florestan, a sociologia clássica, inclusive a da ordem, elabora teorias que permitem a construção, descrição e interpretação da realidade social. Suas categorias estão impregnadas de historicidade e o sociólogo a elas recorre como suas “caixas de ferramentas”. “Ele nunca defendeu a ideia de que os métodos de investigação e interpretação devessem ser escolhidos por critérios políticos. São os problemas investigados que determinam os instrumentos de investigação”, aponta. “Aliás, eu mesma defendi na minha apresentação Florestan Fernandes: um Sociólogo Socialista ao livro Dominación y Desigualdad: el Dilema Social Latinoamericano que: ‘Graças a este extraordinário conceito de ordem social, o sociólogo se manteve atento à exclusão da maioria da plena cidadania e o socialista não submergiu numa narrativa teleológica das classes sociais. Sua perspectiva sociológica manteve o foco nos condenados da terra, e estes estão aquém da classe operária, ou para além dos muros da ordem social competitiva, continuam ali, de onde ele próprio emergiu’.”
Em maio de 1986, uma nova mudança na trajetória de Florestan. Após uma reunião com Lula, Eduardo Suplicy e José Dirceu, o sociólogo aceita o convite para ingressar no Partido dos Trabalhadores. Em entrevista descrita por Ceravolo Sereza, concedida ao jornal Convergência Socialista, que representava à época a esquerda trotskista do partido, ele justifica a escolha pela agremiação. “Havia poucas alternativas… eu poderia ter entrado no PT antes, se o PT tivesse antes se definido em termos de posições socialistas mais esquerdistas.” Eleito parlamentar com 50.024 votos, a quarta melhor votação petista em São Paulo – atrás de Lula, Plínio de Arruda Sampaio e Luiz Gushiken –, apesar de manter sua postura socialista, disse em uma entrevista em fevereiro de 1987, ao Jornal do Brasil, que era possível fazer composições com outros partidos em alguns pontos. “No que diz respeito à defesa da natureza como riqueza social para o Brasil, por exemplo, eu, que pertenço à extrema esquerda do PT, falo da mesma forma que Fábio Feldmann, eleito pelo PMDB.”
Na Assembleia Constituinte, ocupou a subcomissão de Educação, Cultura e Esportes, tendo apresentado um total de 96 emendas, 34 das quais foram integradas ao texto final, dentre elas a que garante a autonomia das universidades. Em seu segundo mandato, em 1993, apesar de o PT ter decidido não participar da revisão constitucional, Florestan apresentou uma proposta de emenda para incluir políticas afirmativas de inclusão da população negra à Constituição, uma forma, segundo disse à época, de “corrigir uma injustiça que desgraça as pessoas e as comunidades negras”. Mas um acordo entre líderes partidários fez com que a emenda não entrasse na pauta de votação, e parte do que o sociólogo vislumbrava no texto só sairia do papel mais de uma década depois.
No parlamento, sua principal preocupação foi a educação. Isso o leva a um embate, em seu segundo mandato, com o senador e antropólogo Darcy Ribeiro (PDT), durante as discussões para a elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). “O papel dele nos embates que culminaram com a elaboração da LDB foi fundamental”, avalia Kátia Lima, doutora em Educação e professora da Universidade Federal Fluminense. “Os debates realizados no parlamento e nas atividades organizadas pelo Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, importante polo aglutinador dos movimentos sociais, sindicais e estudantis, em defesa da educação pública e gratuita, culminam na versão elaborada pelo senador Cid Sabóia. Estes debates adquirem novos rumos com a apresentação, em 1992, de um substituto para o projeto de LDB elaborado por Darcy Ribeiro. O senador, ignorando o trâmite democrático do projeto de Cid Sabóia, ocorrido na Câmara e no Senado, formulou, com a assessoria de membros do Ministério da Educação, outro projeto”, relata. “Todo este processo foi vivido intensamente por Florestan, acusado, injustamente por Darcy de abandonar os trabalhadores, que estudavam à noite em péssimas escolas, à própria sorte. Este embate entre os dois constitui, na minha avaliação, a expressão do embate histórico entre projetos antagônicos de educação e de sociabilidade: o projeto em torno da luta pela educação pública e gratuita, por um lado, e a ‘liberdade de ensino’, por outro, defendida pelo setor privado leigo e confessional.”
O descanso do lutador
Já no fim do segundo mandato, a saúde de Florestan estava debilitada e o fato de ter conhecido o Legislativo “por dentro” o desanimou de tentar mais uma eleição. “Ele estava desiludido com a luta política e conheceu uma face do poder que até então não conhecia. Pediram para ele se candidatar novamente e ele veio falar comigo, dizendo que nunca havia tirado férias, que precisava descansar, mas tinha medo de ser taxado de ‘traidor’. Ele não acreditava mais nas possibilidades do Congresso Nacional, mas mesmo assim sua postura ética era tão forte que ele ainda hesitava”, relembra Heloísa Fernandes.
Assim, seguiu lutando contra os efeitos da hepatite e continuou participando do debate público por meio de artigos publicados na Folha de S.Paulo. No dia 10 de agosto de 1995, após menos de uma semana de um transplante de fígado fracassado, Florestan faleceu, deixando, além da vasta obra que o situa como um dos maiores sociólogos e pensadores políticos da história do Brasil, também um exemplo de militância, de alguém que sempre privilegiou a perspectiva dos excluídos em um meio acadêmico que muitas vezes dá as costas a eles. E hoje, sua ausência ainda é sentida no âmbito das discussões públicas. “Ele era sempre o ‘chato’, quando todo mundo estava muito satisfeito, chegava e ponderava que não era por aí. No debate político essa figura é muito importante, sem alguém assim, descambamos para a direita ou para o conformismo de uma maneira mais fácil”, analisa Lidiane Rodrigues.
A filha Heloisa conta como a morte do pai a fez se afastar da universidade e de que forma a força de sua presença a fez retornar. “Quando meu pai estava doente, queria ficar mais próxima dele, mas tinha muitas atividades acadêmicas. O fato de não poder conviver com ele nessa fase me deixou com um ódio profundo da universidade. Quando me aposentei fiquei totalmente afastada, fazia tecelagem, cheguei a importar livros… Não queria falar do meu pai, ficava péssima e não participava de homenagens, solenidades, eventos”, relembra.
“Na inauguração da Escola Nacional Florestan Fernandes, meu irmão estava viajando e ele pediu para eu ir. Minha mãe ficou uma hora no telefone tentando me convencer e neguei. Depois pensei que ela ia acabar indo, então voltei atrás. Estava irritada, ainda mais porque o evento ia ser no dia do meu aniversário. Naquela noite, sonhei que acordava com um barulho forte fora de casa. Levantava, olhava pela fresta da janela e via vários trabalhadores em um caminhão, com meu pai entre eles. Então ele descia e falava para mim: ‘Levanta, hoje é dia de festa’”, conta, emocionada. “Aquele dia foi o fim do meu luto.”
*Matéria publicada na edição 89 da Revista Fórum, de agosto de 2010 e retirada do site da revista.