Genebra, Suíça, 28/4/2011 – A catástrofe nuclear de Fukushima, no Japão, e o 25º aniversário do desastre na central atômica ucraniana de Chernobyl desnudaram contradições no papel desempenhado pela Organização Mundial da Saúde, que membros da sociedade civil se encarregaram de destacar. Uma coalizão de organizações não governamentais chamada Pela Independência da OMS, afirma que essa agência multilateral nunca mostrou autonomia em suas decisões e ação para cumprir seu mandato de proteger e curar as vítimas de vazamentos radioativos.
Os denunciantes atribuem a alegada inatividade da OMS a um acordo que assinou em 1959 com a Agência Internacional da Energia Atômica (AIEA), entidade-irmã dentro da Organização das Nações Unidas, mas dedicada a promover a indústria nuclear. Nesse acordo – sustenta a coalizão – a OMS se privou “de toda autonomia e de meios para proteger a população das contaminações radioativas”.
A OMS deveria romper esse vínculo, “essa relação incestuosa” que tem com a AIEA, disse à IPS o jornalista suíço de origem russa Wladimir Tchertkoff, que fez sete documentários para televisão sobre as consequências de Chernobyl. E a irmandade entre as duas agências é desigual, pois a AIEA depende do Conselho de Segurança da ONU e a OMS depende de seu Conselho Econômico e Social, órgão de menor hierarquia.
O acordo de maio de 1959 obriga as partes a se consultarem mutuamente antes de empreender um programa ou uma ação que apresente aspectos de interesse para uma das associadas. Também estabelece restrições para salvaguardar o caráter confidencial de determinados documentos. Nesse quadro, “o lobby nuclear conseguiu que a OMS renunciasse a cuidar das vítimas das catástrofes atômicas”, disse o acadêmico suíço Jean Ziegler, vice-presidente do comitê assessor do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
Em concordância com o acordo, a posição da OMS indica que “quando há um acidente nuclear, nós não nos ocupamos das vítimas, é a agência nuclear a única competente”, disse Ziegler à IPS. Isto é totalmente escandaloso porque determina a existência de milhares de pessoas mortas que poderiam ter sido salvas, ressaltou. Esta circunstância “renova nossa suspeita de que o lobby nuclear está bem estabelecido nesta casa”, acrescentou, apontando para a sede da OMS, diante da qual acontecia a entrevista.
A última estimativa de vítimas de Chernobyl divulgada pelas duas agências data de 5 de setembro de 2005 e fala em cerca de 50 mortos e aproximadamente quatro mil casos de câncer.
A coalizão Pela Independência da OMS qualifica estes números de “irrisórios” porque não consideram o estado de saúde das crianças, até 80% delas afetadas em áreas contaminadas, nem o número de mortos e inválidos entre os 600 mil e um milhão de “liquidadores”, como foram chamados os que acudiram para evitar uma catástrofe ainda maior em Chernobyl.
Tchertkoff recordou que o estudo “Chernobyl: Consequences of the Catastrophe for People and the Environment”, traduzido do russo e publicado em dezembro de 2009 pela Academia de Ciências de Nova York, estima em 985 mil a quantidade de mortos pela catástrofe em todo o mundo, desde o dia da explosão do Reator 4 da central, 26 de abril de 1986, até 2004.
Uma declaração divulgada pelo governo da Bielorússia em 2000 assegura que um ano antes da explosão do vizinho reator de Chernobyl a situação sanitária da população infantil desse país mostrava que 80% gozavam de boa saúde. Contudo, os números haviam se invertido 14 anos mais tarde, quando apenas 20% das crianças estavam em bom estado e 80% tinham sinais de enfermidades.
As organizações da coalizão Pela Independência da OMS mantêm, desde 27 de abril de 2007, uma guarda permanente diante da entrada da sede central dessa agência em Genebra. Todos os dias úteis, das oito às 18 horas, ativistas deste grupo pedem a revisão do acordo de 1959 com a AIEA e também que a OMS cumpra sua missão de elevar o estado da saúde de todos os povos aos níveis mais altos possíveis. Entretanto, Tchertkoff se mostrou cético a respeito.
A OMS não pode fazer muito porque é vítima de uma situação criada, afirmou Tchertkoff. Diante do acidente de Fukushima, que começou em 11 de março com o terremoto e o tsunami na costa nordeste do Japão, e que ainda não foi contido, a OMS não sabe o que fazer, afirmou. “Não possui pessoal capaz de enfrentar esta questão. Dispõe apenas de cinco pessoas, das quais apenas duas com diploma universitário, mas sem nenhuma experiência”, acrescentou. Tchertkoff mencionou as polêmicas desatadas pelas políticas da OMS durante a pandemia de gripe de 2009, em particular sobre a fabricação e distribuição de vacinas e medicamentos contra esse mal.
Ziegler enfatizou que a OMS está infiltrada pelo lobby nuclear e pela indústria farmacêutica. Recordou, também, que uma comissão investigadora, criada pela diretora Gro Harlem Brundtland (1998-2003), comprovou que alguns funcionários da organização eram pagos pela indústria do tabaco, enquanto a agência debatia o Convênio Marco para o Controle do Tabaco, finalmente aprovado em 2005.
Tchertkoff acredita que na OMS convivem duas tendências. Uma estima que, se as circunstâncias continuarem se precipitando como nas últimas semanas, será necessário que a organização volte a discutir suas políticas em matéria de radiação nuclear. Outro grupo afirma que reabrir o debate significará uma confissão de que “nada fizemos durante as últimas décadas”, acrescentou.
“É lamentável uma questão interna de tal natureza quando temos pela frente Fukushima, Chernobyl e todas as centrais nucleares do mundo, cercadas por aproximadamente 410 milhões de pessoas que vivem em um raio de 30 quilômetros desses focos de perigo”, concluiu Tchertkoff.
Não foi possível conseguir uma resposta da OMS para estas acusações, apesar do pedido de entrevista com sua diretora de Saúde Pública e Meio Ambiente, María Neira. Envolverde/IPS